quarta-feira, 22 de abril de 2020

ERA DA MENTE ESCRAVA


Syro Cabral de Oliveira

A vaidade, a busca de um vazio incessante, tem levado as pessoas atualmente a perseguirem um progresso ilusório, um modelo de vida de uma complexidade sem paralelo, que, possivelmente, jamais foi visto até então, em relação à natureza humana. As sociedades deixaram-se enganar rapidamente por falsas promessas de um mundo melhor e de um bem-estar que, provavelmente, largarão para trás um custo que talvez jamais se tenha visto em toda a história da humanidade.

                         É possível que a crise pela qual o mundo está atualmente vivendo deixará feridas expostas jamais presenciadas. Isto porque as pessoas deixaram, sem se perceberem, se seduzir por um discurso sorrateiro, traiçoeiro, sub-reptício, enganador, fantasioso, cheio de encanto e truques dos mais bem elaborados de todas as épocas, que tem por objetivo último modelar o modo de pensar das pessoas nos tempos atuais. Pois é notório que tal discurso invade nossos lares, todos os dias, devagarinho e silenciosamente, com o nosso próprio consentimento, e vai se alojando em nossas mentes, a conta-gotas, à semelhança das doses homeopáticas, construindo em nós um modo de pensar totalmente uniforme. Não é que ele seja excelente por si mesmo, mas porque ele nos chega dentro de uma embalagem eletrônica, mesclado de mistérios, e que, de certa forma, é compartilhado facilmente entre todos os usuários das redes sociais e também disseminado simultaneamente, através de todos os veículos de comunicação de massa. Além desse compartilhamento direto, esse discurso nos chega permeado de um pragmatismo altamente sedutor, de modo que, nunca é demais acrescentar que o modelo atual de educação, voltado para uma formação totalmente pragmática, tem por objetivo preparar o terreno para a sua penetração em todos os segmentos das sociedades. Pois sabe-se, evidentemente, que foi deixada inteiramente de lado uma educação que teria por objetivo último primar para uma real formação do ser humano. Uma formação que permita ao homem a se conhecer a si mesmo e o mundo que o rodeia. Uma formação que permita de fato ao homem se defender das cantilenas persuasivas e altamente sedutoras.

                         Nesse aspecto, o homem de hoje tornou-se um animal indefeso, vulnerável facilmente a determinadas ideologias e sujeito a toda uma construção meramente artificial, que visa, acima de tudo, a atingir alvos predefinidos pelo pensamento dominante.

                         As consequências dessa pandemia do coronavírus, certamente, serão incomensuráveis diante das estruturas ideológicas que o mundo está atualmente submetido. Ou seja, o mundo tornou-se prisioneiro de um modelo de capital que visa apenas o aqui e o agora, sem levar em consideração, propriamente dito, a presença dos seres humanos que contracenam nesse cenário capitalista. Além disso, o modelo econômico vigente, mesclado com o poder político e seus interesses escusos, que subjazem em suas profundezas enigmáticas, naturalmente, vai deixar um ponto de interrogação para todos os acontecimentos que estão se dando em nossa atualidade.

                         É possível que alguém diga, perante uma afirmação dessa natureza, em tom de ironia, o seguinte: “Oh, você está sendo um tanto pessimista!” E, logo em seguida pondera e afirma que as pandemias não são um caso novo. “Elas existem desde os primórdios da humanidade. Vejamos alguns exemplos recentes que se acham historicamente registrados. Peste Bubônica, século XIV; Peste de Marselha, século XVIII; Gripe do Frango e AIDS, século XX etc.”

                        Esses exemplos não deixam de ser uma pura verdade e são incontestáveis. Ninguém negaria esses fatos. O que muitas pessoas não veem e nem percebem são as circunstâncias que o mundo se encontra quando as pandemias ocorrem. As consequências das crises naturalmente são muito diferentes umas das outras em relação ao contexto do momento em que elas se dão.

                        Vejamos, então: o homem do século XXI tornou-se inteiramente dependente das tecnologias, das chamadas descobertas científicas, dos meios de produção agrícolas concentrados nas mãos de poucos produtores etc. Ou melhor: o homem do século XXI não se preocupou em buscar sua independência, sua liberdade, numa palavra, se libertar da escravidão. Pelo contrário, ele contribuiu e muito para o avanço de sua própria escravidão, quando procurou caminhar somente em direção da busca incessante dos confortos físicos, das facilidades oferecidas pelas tecnologias, em todos os sentidos. Ele não procurou se atentar que suas ações, embora inconscientes, só serviram para dar um grande impulso para a concentração da produção de alimentos e de todos os bens necessários à sua própria subsistência nas mãos de pequenos grupos poderosos e detentores dos instrumentos de produção, seja nos campos, seja em todos os domínios industriais. O homem comum, assalariado, tornou-se, por seu turno, um ser dependente dessa cadeia produtiva de bens de consumo, em nome de confortos e prazeres desenfreados e, também, de uma comodidade paradisíaca, sem atentar para as coisas mais simples que nos são absolutamente indispensáveis à nossa subsistência. Ele não foi capaz de perceber que todos esses confortos, construídos atualmente, não deixam de ser, em sua maior parte, um instrumento de domínio, através da dependência. Pois sabe-se que, com toda clareza, que a estimulação de desejos de consumo é uma das maiores ferramentas que proporcionam o domínio humano.

                        Seus hábitos de vida, quer de como comportar-se no dia a dia, de alimentar-se, de vestir-se etc. foram sub-repticiamente mudados. Criaram-se vícios de paladares, de modo a fazer com que as pessoas apeteçam alguns alimentos e rejeitem outros. De sorte que é possível que uma pessoa, hoje em dia, morra de fome, ainda que haja alimentos em abundância em sua própria casa. Em um diálogo entre Sócrates e o sofista Antífon – Xenofonte –, este último “supunha que a filosofia necessariamente aumentasse a felicidade de cada um” e, logo um pouco adiante acrescenta, que os frutos que Sócrates tem dela colhido “são aparentemente muito diferentes.” “Por exemplo – diz ele –. estás vivendo uma existência que levaria até um escravo a abandonar seu senhor. O que comes e bebes é o que há de mais pobre; o manto que usas, além de precário, jamais é trocado, no verão ou no inverno; por outro lado, sempre andas descalço e sem túnica. Além disso, te recusas a receber dinheiro, cuja mera obtenção já constitui uma alegria, ao passo que o ter torna a pessoa que o possui mais independente e feliz…”

                        Entre outras coisas, Sócrates replicou o sofista da seguinte maneira:

                        (…) “em caso dos amigos ou do Estado necessitar de ajuda, quem disporá de mais folga para atender às suas necessidades? Aquele que vive como vivo agora ou aquele cuja vida classificas como feliz? Quem considerará servir como soldado tarefa mais fácil? Quem não é capaz de sobreviver sem alimento caro ou quem se contenta com o que pode obter? Quem, ao ser sitiado, será o primeiro a se render? Aquele que deseja o que é de difícil aquisição ou aquele que é capaz de se arranjar com qualquer coisa que esteja disponível?”

                        “Parece, Antífon, que imaginas que a felicidade consiste de luxo e extravagância. Acredito, contudo, que é divino não ter necessidades; tê-las o mínimo possível aproxima-se do divino. E como aquilo que é divino é o mais excelente, aquilo que mais se aproxima de sua natureza, está mais próximo do mais excelente.”

                        Diante do exposto acima, convocaríamos as pessoas a se unirem em torno de si mesmas e procurassem fazer uma séria reflexão acerca do sentido da vida e de todas as coisas que se encontram ao seu redor. Procurassem também, ao mesmo tempo, questionar a si mesmas sobre as coisas que as afetam e que, além disso, fossem diretamente ao ponto crucial que nos interessa, ou seja, que questionassem se o mundo é ruim em si mesmo, ou, na verdade, é um produto, ou, em última análise, uma construção de nossas ações emanadas dos nossos pensamentos.

                        Se concluirmos que o mundo é um produto de nossas próprias ações, concluiríamos simultaneamente também que o mal não está nas coisas fora de nós, mas que o mal é um produto de nossos pensamentos e consequentemente de nossas ações. Logo, o mundo é um resultado do que pensamos e fazemos.

                        Então, somos escravos, na verdade, não em virtude das coisas que advêm do exterior, mas, na realidade, porque permitimos que alguém nos escravize. E a pior escravidão de todas as escravidões é a escravidão mental.

19 comentários:

  1. Amigo Siro, cada vez mais começo a perceber e te dar razão. Parabéns, muito bom o texto.

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  2. Texto muito bem escrito!
    Concordo que devamos fazer reflexões internas. Quanto aos meios virtuais que nos "dominam", também acredito que isso esteja acontecendo. Eu procuro filtrar bastante as informações e tento não me contaminar com "verdades absolutas".

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    1. Em primeiro lugar, muito obrigado pelo teu comentário.
      Em segundo lugar, tua colocação acerca das verdades absolutas foi muito pertinente. Não devemos nos deixar enganar, em hipótese alguma, diante do canto das sereias. Há sempre muitas pessoas que se colocam como donas da verdade. São os verdadeiros dogmáticos, ou seja, as autoridades infalíveis.

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  3. Amigo, cada dia mas eu me convenço de suas argumentações. Não perca o norte.

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    1. Sempre vou procurar marchar constantemente por essas sendas.

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  4. Parabéns, meu caro Syro.
    Uma defesa pela autossuficiência e pela valorização das coisas simples e essenciais dizem muito sobre o caráter do amigo e colega que tanto admiro.

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    1. É isso aí, meu caro Emmanuel, vejo a simplicidade como uma virtude.

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  5. Bom texto!! Eu acho que muita coisa vai mudar.

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  6. Sem dúvida, meu caro amigo Vallim.

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  7. Parabéns pelo texto, Syro. Suas considerações são ótimas para os tempos de hoje. Um abraço

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    1. Cara Patrícia, se não podemos acrescentar, devemos nos calar.
      Vamos marchar juntos através das sendas do esclarecimento. Conte comigo.

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  8. Parabéns Prof.Syro Cabral. Maravilhoso seu texto. Concordo que o mundo será sempre um resultado das ações do Ser Humano,através de nossas ações e pensamentos.

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    1. Certamente, é preciso nos mudarmos para que possamos mudar o mundo e não o inverso.

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  9. De acordo com este texto...A preocupação está nesta dependência ou seja, "escravidão mental", este domínio industrial tecnológico sem volta, neste consumo de desperdício desenfreado,este conforto e "prazeres"...Tudo sem equilíbrio, está cada vez mais, fazendo parte de nossa vida. Criaram-se vícios desconstrutivos e de certa maneira toxicando nossa mente e natureza. Sem pessimismo, mas não há volta. Parabéns Syro Cabral. Abraços.

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    1. As pessoas, em virtude das promessas de um bem-estar sem comparação, perderam totalmente sua própria referência.

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  10. Escravos da tecnologia....
    Escravos do dinheiro....

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  11. Parabéns pelo texto, amigo Syro Cabral. A conclusão em uma reflexão que chego é que o mundo é um produto de nossas próprias ações e memórias genéticas. Muitas vezes até sem perceber e sem a intenção de fazer mal,mas vem a consequência de pensamentos e ações, pois vejam bem, a Cultura Industrial em massa e seu consumismo, como a TV, a imprensa de uma maneira geral, a Internet que foi criada na 2° Guerra Mundial para espionagem durante a Guerra Fria, serve ainda como uma obcessão e intervenção em nossa vida. Recriam e adaptam para vivermos sempre escravos mentalmente, sem capacidade de criatividade e nem criticidade. A Cultura está sempre sendo industrializada nos moldes de uma Globalização, corremos o risco ( que é o que está acontecendo) de ficarmos "hipnotizados" pelas leis da mídia. Abraços. Jane

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