sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

SENTIMENTO DE IMORTALIDADE DA ALMA

Syro Cabral de Oliveira
O medo, o pavor, a insegurança e todos os sentimentos desse mesmo gênero são, na maior partes das vezes, produtos da ignorância humana. Embora os sentimentos humanos, em sua maioria, se dão em virtude de nossos valores culturais, mas, mesmo assim, alguns são naturais e logo universais no tocante aos seres humanos globalmente. Chamamos de naturais todos os eventos que acontecem frequentemente do mesmo modo, o que nos permite, naturalmente, fazermos previsões. Assim, todas as ciências experimentais são o que são em virtude da repetição dos fenômenos naturais.
Os seres que sofrem mudanças por si mesmos se encontram na categoria dos seres naturais. Assim, a criança que se torna adulto ou a semente que se torna árvore sofreu uma mudança ou um movimento de uma categoria a outra. Esse tipo de movimento, chamamos de movimento intrínseco ao ser, ou seja, trata-se de um movimento natural, pois não há necessidade de nenhuma força exterior ao próprio ser; ao passo que, quando se transforma uma madeira em uma mesa, também houve um movimento, ou seja, a passagem da madeira à mesa. Nesse caso, trata-se de um movimento artificial, isto é, extrínseco ao ser ou à coisa. Em outras palavras, os movimentos ou as mudanças naturais são inerentes aos próprios seres ou às próprias coisas, ao passo que os movimentos ou as mudanças artificiais são exteriores aos próprios seres ou às coisas.
Voltando à questão dos sentimentos humanos, podemos notar que mesmo entre as pessoas ateias há uma manifestação evidente pela aceitação da imortalidade da alma. Não há nenhuma contradição entre seu comportamento e as suas convicções, como algumas pessoas poderiam pensar. Isto por que, a imortalidade da alma e a existência de Deus são duas coisas absolutamente distintas. Uma coisa não implica outra por mais que a crença comum procure sustentar. O sentimento de imortalidade da alma é um sentimento natural e logo comum a todos os seres humanos, independente de suas convicções pessoais. Povos de diferentes culturas e que nunca tiveram contatos entre si manifestam-se naturalmente em direção desse tipo de sentimento, ou seja, de que a alma é imortal. Já a crença na existência de um ser superior e transcendente é uma invenção humana, com o puro propósito de alguns homens se valerem dessa ideia e, consequentemente, se achar no direito de dominar outros homens em consequência da ignorância dos últimos1.
Assim, podemos observar que, diante dos fenômenos naturais, há também uma tendência natural entre os seres humanos em segui-los inconscientemente. Podemos pensar em dois meios de produção: o capitalismo e o socialismo. O último, como se nota, é um modo de produção artificial, elaborado ideologicamente por alguns homens, com a intenção de submetê-lo à humanidade, ao passo que o primeiro surgiu espontaneamente, entre os homens, sem nenhuma regra preestabelecida. Vemos que mesmo entre as sociedades socialistas, em seus momentos difíceis, estas recorrem as regras do capitalismo, na tentativa de impedir que sua máquina governamental perca o rumo e consiga sobreviver às grandes turbulências e às crises periódicas. Do mesmo modo, notamos também que entre as diversas convicções religiosas, os seres humanos, em seus momentos difíceis, deixam seus sentimentos ligados à imortalidade da alma se externarem com toda força. Isso se dá porque é impossível as pessoas se manterem artificialmente o tempo todo. O inconsciente humano, ou seja, essa estrutura que é produto de um sentimento puramente instintivo e próprio de um determinado gênero animal, tende naturalmente a seguir tudo aquilo que não seja elaborado artificialmente.
Fabiano Costa, em seu livro Contos de Medo e outras histórias de pavores e assombrações, Litteris Editora, soube explorar e retratar, com toda propriedade, esses sentimentos humanos velados em algumas pessoas, mas muito manifestos em outras. Costa faz um passeio pelos bairros da capital carioca, narrando episódios arrepiantes e assustadores, cheio de acontecimentos trágicos. Com a sua habilidade inacreditável de fazer esses tipos de narrativa, traz à tona imaginações adormecidas no âmago de nosso inconsciente e mexe com o grande desejo de mistérios, que é próprio do gênero humano. Isto por que, nos momentos de aflição ou angústia, o ser humano tende, naturalmente, a deixar sua imaginação aflorar, com toda intensidade. Sua mente passa a viajar e buscar soluções ou explicações para os seus problemas através do chamado mundo sobrenatural. Para algumas pessoas, esse tipo comportamento é tido como uma pura invenção ou algo artificial, mas para alguns filósofos, não há nada de inventivo ou artificial nesse tipo de comportamento, pois, segundo eles, tudo que o homem predica é, justamente, uma consequência de uma realidade que sempre existiu. Assim, observamos que Costa, conscientemente ou não, procura explorar esse sentimento da imortalidade da alma, o qual é absolutamente próprio e natural do gênero humano. Ele narra as nossas fantasias que, no fundo, em hipótese alguma, são destituídas de realidade. Tudo que imaginamos é um produto de uma realidade perdida ao longo de nossas vidas passadas. O que Costa narra não é nada mais do que uma rememoração de um passado longínquo, vivido por ele, sem que o tenha plena consciência desse mundo vivido em uma época perdida ou apagada, em virtude da decadência humana. O afastamento do homem das coisas divinas fez com que ele atualmente viva temeroso, assustado e inseguro em relação a algo que ele não pode explicar à luz de um olho corporal. Não pode explicar porque a nossa mente está inteiramente vinculada às coisas divinas, isto é, aos objetos não materiais, sem que o homem mundano atual tenha plena consciência desse fato. Assim, para que não haja nenhum mal entendido, vamos deixar claro que a divindade é entendida aqui, sobretudo, pelos espíritos mais elevados, como a pura inteligência, o puro raciocínio, numa palavra, a pura imaterialidade. Sempre que nos encontramos em aflição procuramos, naturalmente, uma resposta para os nossos conflitos por meio de um dito mundo de fantasia ou um mundo de imaginação que, para algumas pessoas, não existe. Se desenvolvermos ao máximo o nosso lado divino, tornar-nos-emos totalmente livres dessas angústias ou aflições que, vez por outras, se apoderam de nossas mentes.
Os contos e as narrativas de Costa são, na realidade, um verdadeiro alimento para as nossas almas, na medida em que nos fazem relaxar e muitas vezes vingar desafios e certas provocações advindos de algumas pessoas arrogantes e todas as mágoas contidas em nosso coração em virtude do descumprimento dos acordos estabelecidos tacitamente entre as pessoas . “O lápis” e “Você não tem coragem!”, contos de sua obra, não deixam de ser uma boa ilustração para situações que implicam falta de respeito e reconhecimento de nossos valores morais.
O leitor que percorre as páginas de sua obra vai encontrar, certamente, muitas passagens que não são nada mais que uma descrição de situações imaginadas ou devaneadas em seu dia a dia. É natural que alguns leitores, ao entrarem em contato com a sua obra, venham experimentar algumas sensações de medo, arrepio pelo corpo afora ou outras similares. Esses tipos de sentimento são fáceis de se explicar, pois se dão em virtude da nossa ignorância, isto é, da falta de conhecimento ou de uma falta explicação clara para determinados fenômenos. O homem diante daquilo que ele não pode ou sabe explicar ou ainda não possui uma resposta clara para seus questionamentos se torna temeroso, frágil e, por conta disso, vai buscar uma resposta ou explicação, não bem fundamentada, através do sobrenatural. Todos os fenômenos da natureza, tais como o vento, os raios, a tempestade, o fogo etc., quando se manifestam com grande intensidade, o homem comum tende a vinculá-los a obra de Deus. Todas as forças incontroláveis, que são forças da natureza, é natural o homem comum ou o homem do povo atribuí-las às divindades. Assim foi no passado e ainda o é, mesmo que inconsciente, entre as pessoas não muito esclarecidas.
A falta de conhecimento leva o homem a se tornar temeroso, frágil, dócil, dependente etc. A exemplo disso, podemos observar que logo no início, em que apareceram algumas pessoas vitimadas pelo vírus HIV, quando ainda não havia uma explicação clara para esse novo tipo de doença, seus familiares evitavam falar seu nome – AIDS –, mas diziam que o paciente estava com aquela “coisa”. O temor faz com que as pessoas não tenham coragem de sequer mencionar determinadas palavras. Tudo isso – é claro – se dá em virtude de dois aspectos: o temor ao desconhecido, ou seja, àquilo que ainda não tem uma explicação clara, e, em segundo lugar, em consequência do poder mágico que as palavras possuem. Mencionar oralmente a coisa seria trazê-la presente.
Há um certo interesse das classes dominantes em manter esse estado de sentimento de fragilidade para melhor se manter no poder. A partir do início da segunda metade do século XIX, em uma palestra proferida pelo professor dr. Mitcheil, reitor da faculdade de Trinity e presidente honorário da Associação de Estudos Clássicos da Irlanda, à Conferencia Inaugural da Associação Clássica da Irlanda, no Centro da Indústria (University College Dublin), em 25 de março de 1993, discorre sobre a reviravolta da grade curricular, em virtude do desenvolvimento industrial nos anos 60 e a ênfase nos estudos técnicos e científicos, em detrimento das matérias vinculadas aos Estudos Clássicos. O vernáculo (a língua pátria) e todas as disciplinas ligadas aos saberes tecnológicos, tais como a matemática, a física e outras disciplinas correlatas são contemplados. Tudo isso para atender a “Uma nova preocupação com o crescimento econômico e o avanço tecnológico bem como uma nova noção de relevância e utilidade na educação focalizou o ensino os meios mais rápidos de aquisição de habilidades específicas para o mercado e questionou o valor de todos os estudos que tinham uma aura acadêmica  que produziriam mais uma elite cultural e intelectual que uma força de trabalho tecnicamente eficiente e tecnologicamente inovadora.” E justifica o professor, em sua palestra: "O grego e o latim não são meras disciplinas; eles representam todo um mundo e envolvem uma grande variedade de assuntos como linguagem, literatura, história e história política, social, militar e econômica e cultural, filosofia, religião, arte e arqueologia". Assim, o jovem que entrar em contato com este mundo de ideias não só vai ter condição de compreender melhor o mundo que o cerca, como também discernir, com maior facilidade, o falso do verdadeiro; vai estar muito mais aberto e apto para enfrentar e solucionar os novos desafios que o mundo de hoje exige. Mas, uma pessoa esclarecida se torna uma ameaça, um perigo para o sistema, para o poder dominante. É melhor mantê-la na ignorância, pois, como é sabido de todos, “gado assustado segue o chicote.”
Finalmente, queremos deixar como recomendação – para uma viagem através de um mundo não tangível ou não visível, o qual para algumas pessoas não existe, mas, ao contrário, diremos que se trata de um mundo que de fato existe e é absolutamente real, porém sua existência se efetiva e se dá somente em nossas mentes, em nossas cabeças – a leitura da obra do professor de Sociologia Fabiano Costa, já citada acima. Todo mundo tangível ou visível não deixa de ser uma real projeção do que existe em nossa mente. Assim, o mundo se torna múltiplo, pois ele varia em conformidade com as nossas mentes.


1 Se Deus, um unicamente, pode governar o Universo inteiro, tal como um verdadeiro tirano, por que eu, um ser humano, que sou sua imagem e semelhança, não posso governar, tiranicamente, um país? Certamente, essa seria uma  maneira bela, absolutamente convincente, para muitas pessoas justificarem a tirania e os sistemas ditatoriais.