sábado, 26 de junho de 2021

 

CONFLITO DE VALORESi

Syro Cabral de Oliveira

Uma andorinha só não faz, verão!


                                                                            A andorinha e os outros pássaros

Uma andorinha, tendo visto um lavrador semear visco no campo, mandou reunir todos os pássaros e disse-lhes que o visco servia para fazer redes de passarinheiros e armadilhas. A andorinha pediu-lhes insistentemente que a ajudassem a apanhar as sementes e a destruí-las. Embora ouvissem o que ela lhes disse, os outros pássaros não fizeram nada e, assim, com o tempo, o visco rebentou, ganhando raízes no solo. Mais uma vez, a andorinha avisou-os, dizendo-lhes que ainda não era tarde para evitarem as complicações se atuassem imediatamente. Mas os pássaros continuaram a ignorá-la e a andorinha deixou os bosques e foi viver na cidade. O visco cresceu alto e forte e foi colhido. Mais tarde, a andorinha viu alguns dos pássaros que tinham sido apanhados recentemente nas redes feitas com o visco contra o qual ela os avisara. Agora, eles tinham aprendido a lição, mas era demasiado tarde.

Os homens sábios sabem prever os efeitos de certas causas, mas os loucos nunca acreditarão neles, até ser demasiado tarde para impedir o desastre. Demoram-se e arriscam-se.

ESOPO

        Para os pais, a Escola está cumprindo com o seu papel satisfatoriamente, mas na realidade isso não vem ocorrendo em sua plenitude. Desse modo, quando algum professor procura seguir à risca os procedimentos inerentes a uma boa educação (formação da conduta humana), esses procedimentos, num olhar precipitado, parecem ser um desvio da normalidade. A razão disso está justamente no confronto de ideias que se dá entre o consueto e a aplicação da arte, entendida essa como capacidade intelectual que faculta a mais alta distinção entre o falso e o verdadeiro. Esta arte, quando posta em ação de modo absoluto, se apresenta como uma transgressão ao habitual. Como o habitual não é nada mais nada menos do que a repetição, com uma certa frequência, de um determinado evento, à primeira vista parece ser o correto – e é assim mesmo que as pessoas costumam pensar: tudo que se repete, obedecendo a uma certa sequência mais ou menos constante, é o correto –, os pais, em face disso, entram obviamente em choque quando veem esta “normalidade” quebrada, já que aquela confiança cega, que eles sempre depositaram nos seus filhos – é colocada em xeque. Esta frustração não é de fato à-toa, porque, a interiorização de nossos valores, na verdade, é fruto da repetição de uma gama de modelos preestabelecida por uma superestrutura social que dita o que ela determina ser o “correto”. Desse modo, a coisa se complica ainda mais quando se tenta aplicar estes atos repetitivos genericamente de maneira irrefletida. Quando se tem, por exemplo, uma verdade particular e se queira aplicá-la ao universal.

Ora, vejamos, pois. Em virtude da frequência com que se dê um evento, as pessoas ingênuas tendem a tomá-lo como uma lei. Ora, a verdadeira essência da lei não está nem sempre na repetição de um fato, mas na própria natureza deste. Como o modo de pensar do chamado homem moderno (para não fazer uso de um termo muito em voga e pomposo: globalizado) está inteiramente influenciado pelo atual modelo científico, isto é, pela démarche indutiva, que se funda justamente na frequência com que se dê um evento – o que não é errôneo para casos particulares –, as pessoas comuns seguem esse modelo como se fosse uma verdade absoluta. O erro não está, muitas vezes, na repetição de um evento, quando esta é considerada dentro de uma determinada especificidade, mas na aplicação da conclusão de que a lei é sempre fruto da frequência de uma repetição, isto é, quando se toma esta repetição particular como uma regra geral e se a aplica ao universal. Ora, se isso fosse verdadeiro, o fato, por exemplo, de alguém jogar uma moeda para o alto cinquenta vezes e todas as vezes que a moeda tocar o chão ter a coroa voltada para cima, poderíamos concluir, a partir daí, com toda justeza que a próxima vez que a moeda for lançada ao ar cairá necessariamente no chão com a coroa voltada para cima. No entanto, todos sabemos que a coisa não se passa precisamente assim, porque, por mais que haja a repetição, a chance de cair cara ou coroa voltada para cima continuará sendo de cinquenta por cento no próximo lançamento da moeda para o ar. A menos que se trate de uma moeda viciada.

Diante da inadequação, isto é, de tomar o acaso pelo necessário, as pessoas se sentem frustradas e, de imediato, concluem que é a realidade que está errada e não a sua interpretação dos fatos influenciada por um método de natureza indutiva, que está inteiramente inapropriado para se fazer dele um uso de caráter absoluto. Consequentemente podemos, logo, concluir, com toda propriedade, que formar estrutura é fácil, o difícil é quebrá-la. E é assim mesmo que nascem os paradigmas.

        Daí, no caso específico aqui, o grande conflito. Entre um professor e uma Instituição dificilmente alguém hesitaria em ficar com a segunda. Porque, na ordem dos sentidos, imagina irrefletidamente que o maior sempre sobrepuja o menor. Nunca pensa que isso é absolutamente verdadeiro no âmbito do quantitativo e não no do qualitativo. Sabemos que, na esfera dos valores morais positivos, estes têm sido, ao longo dos tempos, objeto de fracasso. A imoralidade tem sempre triunfado de maneira colossal, como já dizia o nosso grande e saudoso Rui Barbosa, “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”

        Desse modo, a Escola continua fingindo que está cumprindo com o seu papel satisfatoriamente, pois, todos os professores que insistirem nessa direção, isto é, a de optar pela efetivação de ações que tenham por objetivo a formação do caráter nobre no jovem, pagarão obviamente um preço alto. Para que esse preço não se efetive, cada professor, de modo individual, deverá abdicar de seus projetos pessoais em prol de um pseudo-universal. E assim, a cultura do fracasso, a cada dia que passa, vai se intumescendo assustadoramente. Nesse sentido, a irresponsabilidade vai grassando e universalizando-se em todos os níveis da sociedade. Vejamos como a cultura irrefletida vem se oficializando.

        Numa determinada escola pública ocorreu um episódio bastante engraçado, com um professor, para não dizer muito ignóbil e asqueroso. Esse professor marcou uma avaliação para a primeira semana após o período de recesso, o que pareceu muito extravagante e fora de propósito à vista de alguns de seus colegas de profissão. Não sabiam estes que a sua formação não o permitia compreender, com clareza, a linha divisória entre o que está ligado a um caráter nobre e um caráter baixo. Isto porque, no seu modo de entender as coisas, há na verdade dois mundos que não se misturam. Um de seres absolutamente autogovernáveis, isto é, de seres realmente humanos, e um outro que na realidade não passa de um fosso, onde vivem seres que de humano só têm a aparência. Não sabemos, nesse caso, distingui-los, com clareza, se de fato são seres humanos ou autênticos animais irracionais, que se deixam guiar apenas pelos instintos, os mais abomináveis possíveis. Pois o processo de educação não é outra coisa senão análogo ao cultivo de uma planta. Seu desenvolvimento é diretamente proporcional à seleção cuidadosa da semente, à escolha do local onde ela deve ser colocada para germinar, ao acompanhamento de sua germinação etc. Em consequência disso, dá-se para perceber que o desempenho de suas características essenciais depende diretamente dos cuidados minuciosamente despendidos ao longo de sua formação, compreendendo esta como o coroamento de todos os valores intrínsecos à sua própria especificidade. Nesse sentido, para esse professor, nossas responsabilidades começam no momento em que assumimos determinados compromissos, sobretudo, quando envolvem outras pessoas diretamente. Assim, ele não conseguia graduar as nossas responsabilidades. No seu modo de pensar, elas são iguais tanto no início de uma determinada jornada de trabalho como no seu fim. Quer dizer: ele sempre se deixou guiar pelo princípio da coerência moral. O fato de um profissional chegar atrasado 30 minutos no primeiro dia de trabalho, em relação à hora predeterminada de entrada em seu setor, 40 minutos no segundo, 50 minutos no terceiro, 60 minutos no quarto dia não lhe dá o direito de chegar 70 minutos no próximo dia. E, além disso, no seu ponto de vista, jamais poderemos esperar que esse funcionário chegue ao próximo dia atrasado em relação ao seu horário predeterminado. Se o seu horário de entrada for às 8h da manhã, por exemplo, deveremos esperá-lo sempre que chegue às 8h da manhã. Não é o hábito do vício que deve tornar-se uma regra, mas o contrário, é o hábito do bom comportamento que deve ser estimulado, para que se torne uma frequência em nossas vidas.

        Se os professores não derem o bom exemplo, cumprindo com seus deveres e fazendo com que os seus alunos, por seu turno, cumpram também os seus, nunca poderemos esperar que o país venha a produzir estadistas de grande excelência como outrora, pois, não é, ao que parece, mais verossímil que desses últimos saiam os professores, como soem pensar, mas o contrário parece ser mais convincente. Assim, quando assistimos a alguns profissionais da educação reclamar dos atuais políticos, atribuindo-lhes todas as responsabilidades acerca dos erros e das mazelas por que passa o país, vemos que eles não percebem que de fato trata-se da cultura, já arraigada nesse povo, de que a responsabilidade por todos os problemas de ordem social é sempre do outro e nunca veem com clareza que são eles próprios também a fonte da degradação moral. Não percebem também que o papel da imprensa e dos governantes é justamente o de reproduzir valores já existentes na sociedade. Logo, se nós, profissionais da educação, não fizermos uma cuidadosa reflexão em torno dessa pseudocultura e não procurarmos dar o basta nela, rogando pelo princípio de autoridade – princípio este fundado na arte ou sabedoria a mais excelsa possível – já muito eclipsado nos tempos atuais, correremos o grave risco de um dia, não muito distante, não podermos entrar em sala de aula.

        E o mais bizarro de tudo isso é que não faltam pessoas para elogiar o jeitinho brasileiro.

iConflito de Valores é um texto antigo, do início da primeira década do século XXI, que muito hesitávamos em publicá-lo. Em virtude das circunstâncias atuais, resolvemos torná-lo público. Agradecemos comentários.