terça-feira, 17 de dezembro de 2013

HORÁRIO DE VERÃO

Syro Cabral de Oliveira

Está na hora de a população brasileira se manifestar contra o horário de verão imposto pelo governo federal. Esse famigerado horário, que atende a um diminuto grupo de pessoas que ganha dinheiro fácil na referida estação do ano, traz muito mais prejuízo à população, de um modo geral, do que benefícios. Assim, a população trabalhadora – a qual é totalmente prejudicada – não deve, em hipótese alguma, ser penalizada pelos desvios de recursos e a prática de corrupção, muito usual de os nossos governantes, os quais, em virtude dessas mesmas práticas, deixam de aplicar no sistema elétrico como um todo: da produção de energia às linhas de transmissão.

Obviamente que há aquela parcela da sociedade, que mora nas margens das regiões litorâneas e tem seus trabalhos e negócios em inteira harmonia com a maior quantidade de horas de sol durante o dia, que apoia e gosta do mencionado horário, porque é beneficiada pelo fato de não só ter um horário de trabalho flexível, mas, porque também, mora bem próximo ao seu emprego, cuja natureza é de total conformidade com dias ensolarados. Os comerciantes porque obtêm uma expressiva vantagem financeira, ao ter maior circulação de pessoas em seus estabelecimentos comerciais, neste período, em virtude do alongamento da tarde. Mas, teremos que nos tornar cônscios de que não é pela parte que se deve julgar o todo, até porque essa pequena parte da sociedade necessita da matéria-prima, a qual é produzida por uma outra grande parcela da sociedade que se submete a toda sorte de sacrifícios.

Nosso país, por ser tropical, possui características inteiramente peculiares em comparação com os países da Europa, onde faz sentido adotar esse horário. Logo, o que se faz lá nem sempre deve-se aplicar aqui da mesma forma. Além disso, não há nenhuma razão para se aplicar esse horário no Brasil, uma vez que nosso sistema elétrico é hidráulico, logo não gera grandes custos na produção de energia elétrica. Sem contar, também, evidentemente, que energia não se economiza, porque a quantidade de energia não consumida em um dia, não pode ser armazenada para se consumir no dia seguinte, a menos que usássemos acumuladores de energia (baterias). Já nos países que se usa o sistema movido a carvão, como em alguns países da Europa, o carvão não usado em determinados dias pode ser utilizado nos dias seguintes.

Assim, se de um lado, não devemos nos deixar levar pelas imagens apresentadas pela TV Globo acerca dos reservatórios d'água e o que ela diz – porque já estamos findando o período de estiagem e estamos entrando no das chuvas intensas –, por outro lado, temos todos que ficarmos cientes de que a TV Globo é o porta-voz do governo e consequentemente do sistema em vigor, logo devemos desconfiar de tudo que ela nos apresenta e nos diz.

Vivemos em um país onde o calor é muito intenso, sobretudo, em determinado estado da federação, não só durante o dia, mas também à noite, principalmente, na cidade do Rio de Janeiro. Isso implica um grande sofrimento, em vários aspectos, para uma enorme parcela da população, que é de fato a verdadeira propulsora da produção econômica e que sustenta uma grande quantidade de pessoas que pouco ou nada de fato produz. Essas pessoas, que na realidade movem a economia do país e que são obrigadas a levantar cedo, em virtude da natureza de seu ofício, têm que ir para cama uma hora antes em relação ao horário tradicional. Ao chegar ao quarto, encontram a cama ainda muito quente em consequência do acúmulo de calor retido no telhado, na laje e nas paredes. Isso as deixa muito cansadas e exaustas para o trabalho do dia seguinte, o que contribui para uma grande queda na produção. As crianças são também muito atingidas, pois são obrigadas a acordar uma hora mais cedo, fazendo com que elas marchem para a escola ainda sonolentas, gerando um baixo redimento no processo de aprendizagem, o que redunda em grande prejuízo para os seus pais. Tantos os adultos quanto as crianças têm seu horário biológico alterado, pelo fato de eles serem obrigados a fazer suas refeições uma hora antes do horário habitual, gerando, com isso, sérios problemas de saúde.

Um governo que não visa o bem comum não merece o nosso apoio. Por isso, não apoiamos medidas que visem apenas a interesses meramente econômicos. A única coisa que os nossos atuais governantes levam em conta é o aspecto econômico, tal qual este fosse o elemento essencial para o desenvolvimento de uma nação. Sabe-se que a economia, para povos desenvolvidos, é uma consequência de sua grandeza cultural. Por conta de tudo isso, odiamos o horário de verão. Pedimos a sua suspensão imediata.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Teoria tradicional e teoria crítica


Syro Cabral de Oliveira



Segundo o texto de Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria crítica”, publicado na coleção “Os pensadores”, teoria tradicional equivale a um sistema de proposições fechado, livre de contradições e que quanto menor for o número de princípios, melhor ela será, em relação às conclusões. Este sistema é elaborado de modo que o torne universal, para que se mantenha em conformidade com a aplicação. “Sua validade real reside na consonância das proposições deduzidas com os fatos ocorridos. Se evidenciarem contradições entre a experiência e a teoria, uma ou outra terá que ser revista”.

Assim sendo, teoria é o resultado de um saber acumulado ao longo do tempo que permite ser “utilizado na caracterização dos fatos tão minuciosamente quanto possível”. Este tipo de teoria está intimamente vinculado com a lógica formal e conseqüentemente tende a matematizar todo seu sistema. Ela tem sua origem nos primórdios da filosofia moderna. Descartes, por exemplo, é o defensor do uso de um método. Para ele, na medida em que se faça uso dos métodos racionais, todas as coisas que possam ser do conhecimento do homem se encontram na mesma relação, e considera que uma coisa não é verdadeira, quando de fato não o seja. Assim, não há conhecimento que não possa ser alcançado ou descoberto por mais oculto que o seja. Neste sentido, a teoria tradicional é um sistema geral e abrangente e qualquer pessoa que domine suas regras está em condições suficientes para aplicá-la na realidade. E por ser um sistema geral, fica eliminada a separação entre as ciências, seja no reino orgânico ou inorgânico.

De acordo com o exposto acima, deu-se margem para uma polêmica entre os teóricos e os empíricos. Se de um lado, os empíricos criticam os teóricos, alegando que estes usam de uma maneira cômoda e ociosa para criar seus métodos, pelo fato de partirem de premissas gerais, elaboradas em gabinetes fechados, sem contato direto com a realidade; de outro lado, os teóricos se defendem dizendo que os métodos criados por eles são tão úteis quanto o de seus opositores e, através deles, chegam aos mesmos resultados. Portanto, de acordo com o que foi visto acima, o que diverge são apenas seus métodos de investigações, pois, enquanto os teóricos partem de cima para baixo, como dizem os próprios empiristas, estes partem de baixo para acima, isto é, vão direto aos fatos ou ao campo e fazem suas experiências, através de coleta de dados, para elaborarem suas teorias.

A teoria tradicional aceita com muita naturalidade a separação entre pensar e ser. Para ela isto é uma coisa normal e natural. Mas se isso for admitido, como os defensores desse sistema pretendem que o conceito de teoria seja “independentizado, como que saindo da essência interna da gnose, ou possuindo uma fundamentação a-histórica, ele se transforma em uma categoria coisificada e, por isso, ideológica”. Na verdade, toda teoria tem influencia direta com o processo e a condição histórico-social em que ela se dá, na ocasião de sua atualidade.

Como foi desenvolvido acima, foi o pensamento burguês, através da divisão social dos trabalhos concretos de diversos ramos do saber, que se instaurou uma autonomia aparente em face do conjunto da sociedade como um todo, levando com isto os cientistas burgueses, durante a era liberal, a construírem diversos sistemas filosóficos. Os cientistas dão aos sistemas alguns traços de sua atividade teórica e os transformam em categorias universais, às quais nos levam à ilusão da liberdade dos sujeitos econômicos na sociedade burguesa. Nos cálculos mais complicados, eles são expoentes de um mecanismo social invisível, embora crêem agir segundo suas decisões individuais.

Conforme a teoria tradicional, a totalidade do mundo perceptivo é para o seu sujeito uma sinopse de faticidade; esse mundo existe e deve ser aceito. A sociedade burguesa se apropria deste modo de interpretar o mundo e tenta ajustá-lo do modo mais adequado possível, ignorando a diferença fundamental entre indivíduo e sociedade. Para o indivíduo o mundo se apresenta como algo existente em si, e que ele tem que aceitá-lo e tomá-lo em consideração. Por outro lado, os homens não são apenas um resultado da história, mas também a maneira como vêem e ouvem é inseparável do processo que se desenvolveu através dos séculos. Os fatos que os sentidos nos fornecem são pré-formados de um modo duplo: pelo caráter histórico do objeto percebido e pelo caráter histórico do órgão perceptivo.

Na verdade a vida da sociedade é um resultado da totalidade dos trabalhos dos diferentes ramos de profissão. A produção humana contém sempre algo planificado, pois contém em si razão, embora em sentido limitado, já que o saber aplicado e disponível está sempre contido na práxis social. Assim sendo, a pureza do processo efetivo que deve ser alcançada é impossível, uma vez que o membro da sociedade capitalista vê à sua volta os traços do trabalho consciente em si deste mundo sensível. Não é mais possível distinguir entre o que pertence à natureza inconsciente e o que pertence à práxis social.

Se por um lado, a teoria tradicional é um sistema fechado, como já foi visto, a teoria crítica, por outro lado, a qual é defendida pela Escola de Frankfurt, é um sistema aberto e se propõe a se desenvolver dentro das exigências da própria sociedade. Ela é um produto do processo histórico e se evolui no seio da sociedade, portanto, consistindo na constituição do presente histórico. Sua diferença com a teoria tradicional se amplia no campo da experiência. “A teoria crítica retira da análise histórica como metas da atividade humana, principalmente a idéia de uma organização social racional correspondente ao interesse de todos, são imanentes ao trabalho humano, sem que os indivíduos ou o espírito público os tenham presentes de forma correta”. A teoria crítica torna-se mais evidente a partir do momento em que o teórico e a sua atividade específica se identificam em uma unidade de modo que as contradições sociais não sejam “meramente uma expressão da situação histórica concreta, mas também um fato que estimula e que transforma”. Por outro lado, a teoria tradicional está engajada no processo atual de divisão do trabalho, o qual está fundamentado também no modo de pensar da lógica formal.

Como se nota, o pensamento crítico é um pensamento sempre atual, portanto, faz e se refaz dentro de uma dinâmica constante dos acontecimentos sociais. Seus interesses, por sua vez, “são universais, mas não são universalmente reconhecidos. Os conceitos que surgem sob sua influência são críticos frente ao presente”. Por estar numa dinâmica, a teoria crítica visa transformar a sociedade – a qual permite a continuidade dos interesses do modo de pensar do passado – e por isso mesmo ela é taxada de partidária e injusta. Seu caráter é superar a tensão entre as classes dominante e oprimida, por meio de uma práxis social efetiva e sensível e, por outro lado, a teoria crítica critica esta maneira de pensar puramente intelectual, a qual quer pairar acima das condições reais da sociedade.

Assim sendo, a teoria crítica não aceita ficar ao nível somente do pensamento especulativo acerca das categorias, por exemplo, paz, liberdade etc. porque ela está engajada com a luta social, buscando alcançar o máximo de melhoria para a humanidade através de uma práxis efetiva e transformadora permanente. Neste sentido, este tipo de comportamento “está em contradição com o conceito formalístico do espírito”, o qual mantém um certo afastamento e isolamento das ações sociais reais. Por outro lado, também, seu comportamento teórico “faz parte do conhecimento do homem e da sua natureza que se encontra à disposição nas ciências e nas experiências históricas”. Portanto, evidencia-se que a teoria crítica se funda na idéia de que “as ações dos homens não partem de um mecanismo, mas de suas próprias decisões”.

O comportamento teórico da teoria crítica é um comportamento sempre atual, pois ele acompanha o desenvolvimento histórico em todo seu desenrolar. A teoria crítica não “tem um conteúdo hoje e amanhã outro. As suas alterações não exigem que ela se transforme em uma concepção totalmente nova enquanto não mudar o período histórico”. Suas alterações só se processam em inteira consonância com as alterações históricas. Daí ela ser atual e, portanto, aberta a outras teorias. Por ser um comportamento aberto e crítico, a teoria crítica – ao tentar efetivar seus objetivos na realidade – encontra resistência do já arraigado comportamento que está assimilado pela sociedade como se fosse natural, isto é, o comportamento da teoria tradicional.

Com resistência ou não, os postulantes da teoria crítica profetizam que “o futuro da humanidade depende da existência do comportamento crítico que abriga em si elementos da teoria tradicional e dessa cultura que tende a desaparecer”. Portanto, a teoria crítica, sendo uma teoria que busca incessantemente o progresso da humanidade e conseqüentemente sua transformação, diminui com isso as diferenças sociais, na tentativa de criar uma sociedade mais justa e logo mais humana. Logo, no momento em que isso for atingido, sua meta estará cumprida.

Em “Ulisses ou mito e esclarecimento” nos foi possível fazer um paralelo entre a teoria tradicional e a teoria crítica enfocando alguns aspectos da viagem de Ulisses e o seu confrontamento imediato com as forças cegas dos mitos.

A teoria tradicional está para a mitologia no sentido em que o mito se encontra em um sistema fechado em si mesmo e em que ele consiste necessariamente na repetição do mesmo e, uma vez apreendida a sua lógica interna, é possível conviver pacificamente com ele, já que ela se mede a partir dela mesma. Os monstros míticos representam sempre contratos petrificados, reivindicações pré-históricas, são figuras do destino abstrato, da necessidade distante dos sentidos, assim como os métodos da dedução e da indução que se faz no trabalho do cientista enquanto autônomo e independente. A rota pela qual Ulisses tem que atravessar entre Cila e Caríbdis revela a transferência objetualizadora operada pelo mito, a relação natural entre força e impotência assume um caráter jurídico. Cila e Caríbdis têm o direito de reclamar aquilo que lhes cai entre os dentes. Assim como Circe tem o direito de metamorfosear quem quer que não seja imune a sua mágica, ou Polifemo o direito de devorar seus hóspedes. Cada uma das figuras míticas está obrigada a fazer sempre a mesma coisa, todas consistem na repetição e todas têm os traços daquilo que se fundamenta no veredicto do Olimpo. São figuras da compulsão: as atrocidades que cometem representam a maldição que pesa sobre elas.

Assim como a teoria crítica, é Ulisses o Eu representado pela universalidade racional contra a inevitabilidade do destino. O Eu se constitui a partir do entrelaçamento do universal e do inevitável, sua racionalidade assume uma face restritiva que é a exceção. Ulisses está obrigado, para poder viver, a se desvencilhar das relações jurídicas que o encerram e o ameaçam e nas quais se encerra cada figura mítica. Assim como a teoria crítica não rechaça a teoria tradicional, porque se originou a partir dela, Ulisses também satisfaz o estatuto jurídico de tal modo que este perde o poder sobre ele, na medida em que lhe concede esse poder: é possível ouvir as sereias e a elas não sucumbir, mas não pode desafiá-las, desafio e cegueira são a mesma coisa, quem desafia se expõe ao mito irremediavelmente. Ulisses utiliza a astúcia que se tornou racional (razão prática), ele cumpre o contrato de sua servidão e se debate amarrado ao mastro para não se precipitar nos braços das sereias sedutoras.

Ulisses descobre no contrato uma lacuna pela qual escapa a suas normas, cumprindo-as: o contrato antiqüíssimo não prevê se o navegante que passa ao largo deve escutar a canção amarrado ou desamarrado. O ouvinte amarrado quer ir com as sereias como qualquer outro. Só que Ulisses arranjou um modo de, entregando-se, não ficar entregue a elas. Apesar da violência do seu desejo, que reflete a violência das próprias semideusas, ele não pode reunir-se com elas, porque os companheiros a remar estão surdos, não apenas para as semideusas, mas também para o grito desesperador de seu comandante.

As sereias recebem sua parte. Na tragédia deve ter sido sua última hora. Pois o direito das figuras míticas, que é o direito do mais forte, vive tão-somente da impossibilidade de cumprir seu estatuto. Se este é satisfeito, então tudo acabou para os mitos até sua mais remota posteridade.