quinta-feira, 19 de maio de 2011

Tradição e Modernidade (Hannah Arendt e Habermas)

Syro Cabral de Oliveira


Hannah Arendt, uma pensadora de origem judia e grande estudiosa do modelo político da Grécia antiga, em contraposição ao pensador alemão Habermas – o qual se propõe a entender a modernidade e a sua fundamentação a partir de seus próprios elementos –, procura encontrar uma saída para a crise da modernidade se inspirando na concepção política grega. Arendt está convencida de que a solução para a modernidade deve se estabelecer a partir da restauração de um espaço público aos moldes daquele que se dava na polis grega, tendo assim por base os princípios aristotélicos; enquanto Habermas recusa, com toda veemência, tais princípios.

Pensamos, no entanto, que seria bom observar que Arendt não está aqui defendendo em hipótese alguma uma simples transposição do modelo político como era de fato adotado pelos gregos antigos – como querem alguns comentadores, os quais classificam-na como uma simples nostálgica –, mas, a nosso ver, o que ela na realidade defende é a essência daquele modelo, isto é, uma prática de fazer política fundada na ação comunicativa, como realmente se dava na polis grega. Esse modo deve ser naturalmente adaptado à realidade atual.

Como na Grécia antiga, segundo Arendt, havia uma nítida distinção entre o privado e o público, sendo a esfera pública o lugar propriamente dito do exercício da política, isto é, o lugar da ação e do discurso, e o privado como condição necessária de acesso ao público, ou seja, a saída da necessidade para o reino da liberdade, dada a perda de tais conceituações dessas duas esferas, ela acredita que o mundo perdeu também o lugar do “agir em comum” e, portanto, é preciso que se resgatem esses valores que foram esquecidos.

Entretanto, quando se fala em discurso em Arendt é bom salientarmos que ela não quer enfatizar um tipo de discurso ao estilo do paradigma da comunicação de Habermas, mas um “discurso como meio de persuasão”. Para ela “O ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência”1, o que era “característico da organização do lar privado”2. Inversamente, quando Habermas fala em comunicação, está se referindo a um princípio eminentemente racional.

Portanto, quando se leva em consideração o aspecto filosófico, pode-se dizer que Habermas é um autor que está preocupado em pensar a realidade, ainda que sem pretensão de dar fundamentos absolutos. Seu modelo é eminentemente filosófico e pretende construir uma teoria crítica da sociedade. Enquanto Arendt é antes de tudo uma teórica política, que está preocupada com a experiência do fazer da vida pública. Ela se propõe, em uma de suas maiores obras A condição humana, fazer “uma reconsideração da condição humana à luz de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes”3.

Ainda em seu livro acima mencionado, Arendt dá grande ênfase as categorias ação, poder e discurso. Isto por que tais categorias estão acima de tudo ligadas à atividade política, isto é, a mais alta atividade humana. Neste sentido, a ação é a condição de vida que corresponde à pluralidade. É nela que a vida se dá em sua plenitude, como sustentava também Aristóteles na Política. Os conceitos poder e discurso estão também compreendidos na condição de vida que corresponde à pluralidade. “Sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político”4, afirma ela. Ainda diz mais a autora acerca de tais conceitos: “Sem a ação para pôr em movimento no mundo o novo começo de que cada homem é capaz por haver nascido, ‘não há nada que seja novo debaixo do sol’; sem o discurso para materializar e celebrar, ainda que provisoriamente, as coisas novas que surgem e resplandecem, ‘não há memória’; sem a permanência duradoura do artifício humano, ‘não haverá recordação das coisas que têm de suceder depois de nós’. E sem o poder, o espaço da aparência produzido pela ação e discurso em público desaparecerá tão rapidamente como o ato ou a palavra viva”5. Tanto a ação como o discurso e o poder têm um caráter irreversível. Portanto, eles são atualíssimos e por serem atuais dependem da “pluralidade humana, da presença constante de outros”.

Ao contrário de Habermas, o qual vê o poder como algo que deriva de um consenso, Arendt define poder como alguma coisa que está diretamente ligada à pluralidade. Para ela o poder humano corresponde “à condição humana de pluralidade”.Em sua concepção, o poder jamais é propriedade de um indivíduo; ele pertence a um grupo. Habermas, nesse ponto, diverge muito de Arendt.

Habermas, por seu turno, concentra suas forças em seu conceito de agir comunicativo, o que, no fundo, é para ele um novo conceito de razão mais alargado. Não um conceito de razão como propõe os metafísicos. Mas um conceito de razão que tem por finalidade ser o mais abrangente possível, o qual não está vinculado a nenhum tipo de purismo. Seu projeto é mais do que nunca pensar a modernidade e pensá-la nesse novo conceito de razão – a razão comunicativa –, procurando entender a sua própria dialética.

Já Arendt procura buscar subsídio fora da modernidade, ou seja, nos princípios aristotélicos, os quais lhe servem como ponto básico para entendimento dos problemas dos dias de hoje.

Desse modo, os dois autores lutam no mesmo sentido, só que Habermas tem como ponto de partida o próprio projeto da modernidade, o qual não deve ser abandonado; ao passo que Arendt vai a busca de elementos fora dela na tentativa de recuperar as perdas de referências. Talvez, o motivo dessa investigação dos princípios básicos na tradição para entender os problemas da modernidade deve-se ao fato de que a maior parte de nossos problemas dá-se em virtude da perda de valores fundamentais em função de um avanço desordenado desta.

Bibliografia
ARENDT, Hannah, A condição humana, trad. De Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993, 352 pp.
HABERMAS, Jürgen. El discurso filosófico de la modernidad, 12 lecciones, versión castellana de Manuel Jiménez Redondo, Altea, Taurus, 1989.
FERRY, Jean-Marc. “Habermas critique de Hannah Arendt”, Esprit, n° 42, Juin (1980): 109-124.
ROMAN, Joël. “Habermas, lecteur de Arendt: une confrontation philophique”, Les cahiers de philosophie, n° 4, automne (1987): 161-181.