Syro
Cabral de Oliveira
Segundo
o texto de Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria crítica”,
publicado na coleção “Os pensadores”, teoria tradicional
equivale a um sistema de proposições fechado, livre de contradições
e que quanto menor for o número de princípios, melhor ela será, em
relação às conclusões. Este sistema é elaborado de modo que o
torne universal, para que se mantenha em conformidade com a
aplicação. “Sua validade real reside na consonância das
proposições deduzidas com os fatos ocorridos. Se evidenciarem
contradições entre a experiência e a teoria, uma ou outra terá
que ser revista”.
Assim
sendo, teoria é o resultado de um saber acumulado ao longo do tempo
que permite ser “utilizado na caracterização dos fatos tão
minuciosamente quanto possível”. Este tipo de teoria está
intimamente vinculado com a lógica formal e conseqüentemente tende
a matematizar todo seu sistema. Ela tem sua origem nos primórdios da
filosofia moderna. Descartes, por exemplo, é o defensor do uso de um
método. Para ele, na medida em que se faça uso dos métodos
racionais, todas as coisas que possam ser do conhecimento do homem se
encontram na mesma relação, e considera que uma coisa não é
verdadeira, quando de fato não o seja. Assim, não há conhecimento
que não possa ser alcançado ou descoberto por mais oculto que o
seja. Neste sentido, a teoria tradicional é um sistema geral e
abrangente e qualquer pessoa que domine suas regras está em
condições suficientes para aplicá-la na realidade. E por ser um
sistema geral, fica eliminada a separação entre as ciências, seja
no reino orgânico ou inorgânico.
De
acordo com o exposto acima, deu-se margem para uma polêmica entre os
teóricos e os empíricos. Se de um lado, os empíricos criticam os
teóricos, alegando que estes usam de uma maneira cômoda e ociosa
para criar seus métodos, pelo fato de partirem de premissas gerais,
elaboradas em gabinetes fechados, sem contato direto com a realidade;
de outro lado, os teóricos se defendem dizendo que os métodos
criados por eles são tão úteis quanto o de seus opositores e,
através deles, chegam aos mesmos resultados. Portanto, de acordo com
o que foi visto acima, o que diverge são apenas seus métodos de
investigações, pois, enquanto os teóricos partem de cima para
baixo, como dizem os próprios empiristas, estes partem de baixo para
acima, isto é, vão direto aos fatos ou ao campo e fazem suas
experiências, através de coleta de dados, para elaborarem suas
teorias.
A
teoria tradicional aceita com muita naturalidade a separação entre
pensar e ser. Para ela isto é uma coisa normal e natural. Mas se
isso for admitido, como os defensores desse sistema pretendem que o
conceito de teoria seja “independentizado, como que saindo da
essência interna da gnose, ou possuindo uma fundamentação
a-histórica, ele se transforma em uma categoria coisificada e, por
isso, ideológica”. Na verdade, toda teoria tem influencia direta
com o processo e a condição histórico-social em que ela se dá, na
ocasião de sua atualidade.
Como
foi desenvolvido acima, foi o pensamento burguês, através da
divisão social dos trabalhos concretos de diversos ramos do saber,
que se instaurou uma autonomia aparente em face do conjunto da
sociedade como um todo, levando com isto os cientistas burgueses,
durante a era liberal, a construírem diversos sistemas filosóficos.
Os cientistas dão aos sistemas alguns traços de sua atividade
teórica e os transformam em categorias universais, às quais nos
levam à ilusão da liberdade dos sujeitos econômicos na sociedade
burguesa. Nos cálculos mais complicados, eles são expoentes de um
mecanismo social invisível, embora crêem agir segundo suas decisões
individuais.
Conforme
a teoria tradicional, a totalidade do mundo perceptivo é para o seu
sujeito uma sinopse de faticidade; esse mundo existe e deve ser
aceito. A sociedade burguesa se apropria deste modo de interpretar o
mundo e tenta ajustá-lo do modo mais adequado possível, ignorando a
diferença fundamental entre indivíduo e sociedade. Para o indivíduo
o mundo se apresenta como algo existente em si, e que ele tem que
aceitá-lo e tomá-lo em consideração. Por outro lado, os homens
não são apenas um resultado da história, mas também a maneira
como vêem e ouvem é inseparável do processo que se desenvolveu
através dos séculos. Os fatos que os sentidos nos fornecem são
pré-formados de um modo duplo: pelo caráter histórico do objeto
percebido e pelo caráter histórico do órgão perceptivo.
Na
verdade a vida da sociedade é um resultado da totalidade dos
trabalhos dos diferentes ramos de profissão. A produção humana
contém sempre algo planificado, pois contém em si razão, embora em
sentido limitado, já que o saber aplicado e disponível está sempre
contido na práxis social. Assim sendo, a pureza do processo efetivo
que deve ser alcançada é impossível, uma vez que o membro da
sociedade capitalista vê à sua volta os traços do trabalho
consciente em si deste mundo sensível. Não é mais possível
distinguir entre o que pertence à natureza inconsciente e o que
pertence à práxis social.
Se
por um lado, a teoria tradicional é um sistema fechado, como já foi
visto, a teoria crítica, por outro lado, a qual é defendida pela
Escola de Frankfurt, é um sistema aberto e se propõe a se
desenvolver dentro das exigências da própria sociedade. Ela é um
produto do processo histórico e se evolui no seio da sociedade,
portanto, consistindo na constituição do presente histórico. Sua
diferença com a teoria tradicional se amplia no campo da
experiência. “A teoria crítica retira da análise histórica como
metas da atividade humana, principalmente a idéia de uma organização
social racional correspondente ao interesse de todos, são imanentes
ao trabalho humano, sem que os indivíduos ou o espírito público os
tenham presentes de forma correta”. A teoria crítica torna-se mais
evidente a partir do momento em que o teórico e a sua atividade
específica se identificam em uma unidade de modo que as contradições
sociais não sejam “meramente uma expressão da situação
histórica concreta, mas também um fato que estimula e que
transforma”. Por outro lado, a teoria tradicional está engajada no
processo atual de divisão do trabalho, o qual está fundamentado
também no modo de pensar da lógica formal.
Como
se nota, o pensamento crítico é um pensamento sempre atual,
portanto, faz e se refaz dentro de uma dinâmica constante dos
acontecimentos sociais. Seus interesses, por sua vez, “são
universais, mas não são universalmente reconhecidos. Os conceitos
que surgem sob sua influência são críticos frente ao presente”.
Por estar numa dinâmica, a teoria crítica visa transformar a
sociedade – a qual permite a continuidade dos interesses do modo de
pensar do passado – e por isso mesmo ela é taxada de partidária e
injusta. Seu caráter é superar a tensão entre as classes dominante
e oprimida, por meio de uma práxis social efetiva e sensível e, por
outro lado, a teoria crítica critica esta maneira de pensar
puramente intelectual, a qual quer pairar acima das condições reais
da sociedade.
Assim
sendo, a teoria crítica não aceita ficar ao nível somente do
pensamento especulativo acerca das categorias, por exemplo, paz,
liberdade etc. porque ela está engajada com a luta social, buscando
alcançar o máximo de melhoria para a humanidade através de uma
práxis efetiva e transformadora permanente. Neste sentido, este tipo
de comportamento “está em contradição com o conceito
formalístico do espírito”, o qual mantém um certo afastamento e
isolamento das ações sociais reais. Por outro lado, também, seu
comportamento teórico “faz parte do conhecimento do homem e da sua
natureza que se encontra à disposição nas ciências e nas
experiências históricas”. Portanto, evidencia-se que a teoria
crítica se funda na idéia de que “as ações dos homens não
partem de um mecanismo, mas de suas próprias decisões”.
O
comportamento teórico da teoria crítica é um comportamento sempre
atual, pois ele acompanha o desenvolvimento histórico em todo seu
desenrolar. A teoria crítica não “tem um conteúdo hoje e amanhã
outro. As suas alterações não exigem que ela se transforme em uma
concepção totalmente nova enquanto não mudar o período
histórico”. Suas alterações só se processam em inteira
consonância com as alterações históricas. Daí ela ser atual e,
portanto, aberta a outras teorias. Por ser um comportamento aberto e
crítico, a teoria crítica – ao tentar efetivar seus objetivos na
realidade – encontra resistência do já arraigado comportamento
que está assimilado pela sociedade como se fosse natural, isto é, o
comportamento da teoria tradicional.
Com
resistência ou não, os postulantes da teoria crítica profetizam
que “o futuro da humanidade depende da existência do comportamento
crítico que abriga em si elementos da teoria tradicional e dessa
cultura que tende a desaparecer”. Portanto, a teoria crítica,
sendo uma teoria que busca incessantemente o progresso da humanidade
e conseqüentemente sua transformação, diminui com isso as
diferenças sociais, na tentativa de criar uma sociedade mais justa e
logo mais humana. Logo, no momento em que isso for atingido, sua meta
estará cumprida.
Em
“Ulisses ou mito e esclarecimento” nos foi possível fazer um
paralelo entre a teoria tradicional e a teoria crítica enfocando
alguns aspectos da viagem de Ulisses e o seu confrontamento imediato
com as forças cegas dos mitos.
A
teoria tradicional está para a mitologia no sentido em que o mito se
encontra em um sistema fechado em si mesmo e em que ele consiste
necessariamente na repetição do mesmo e, uma vez apreendida a sua
lógica interna, é possível conviver pacificamente com ele, já
que ela se mede a partir dela mesma. Os monstros míticos representam
sempre contratos petrificados, reivindicações pré-históricas, são
figuras do destino abstrato, da necessidade distante dos sentidos,
assim como os métodos da dedução e da indução que se faz no
trabalho do cientista enquanto autônomo e independente. A rota pela
qual Ulisses tem que atravessar entre Cila e Caríbdis revela a
transferência objetualizadora operada pelo mito, a relação natural
entre força e impotência assume um caráter jurídico. Cila e
Caríbdis têm o direito de reclamar aquilo que lhes cai entre os
dentes. Assim como Circe tem o direito de metamorfosear quem quer que
não seja imune a sua mágica, ou Polifemo o direito de devorar seus
hóspedes. Cada uma das figuras míticas está obrigada a fazer
sempre a mesma coisa, todas consistem na repetição e todas têm os
traços daquilo que se fundamenta no veredicto do Olimpo. São
figuras da compulsão: as atrocidades que cometem representam a
maldição que pesa sobre elas.
Assim
como a teoria crítica, é Ulisses o Eu representado pela
universalidade racional contra a inevitabilidade do destino. O Eu se
constitui a partir do entrelaçamento do universal e do inevitável,
sua racionalidade assume uma face restritiva que é a exceção.
Ulisses está obrigado, para poder viver, a se desvencilhar das
relações jurídicas que o encerram e o ameaçam e nas quais se
encerra cada figura mítica. Assim como a teoria crítica não
rechaça a teoria tradicional, porque se originou a partir dela,
Ulisses também satisfaz o estatuto jurídico de tal modo que este
perde o poder sobre ele, na medida em que lhe concede esse poder: é
possível ouvir as sereias e a elas não sucumbir, mas não pode
desafiá-las, desafio e cegueira são a mesma coisa, quem desafia se
expõe ao mito irremediavelmente. Ulisses utiliza a astúcia que se
tornou racional (razão prática), ele cumpre o contrato de sua
servidão e se debate amarrado ao mastro para não se precipitar nos
braços das sereias sedutoras.
Ulisses
descobre no contrato uma lacuna pela qual escapa a suas normas,
cumprindo-as: o contrato antiqüíssimo não prevê se o navegante
que passa ao largo deve escutar a canção amarrado ou desamarrado. O
ouvinte amarrado quer ir com as sereias como qualquer outro. Só que
Ulisses arranjou um modo de, entregando-se, não ficar entregue a
elas. Apesar da violência do seu desejo, que reflete a violência
das próprias semideusas, ele não pode reunir-se com elas, porque os
companheiros a remar estão surdos, não apenas para as semideusas,
mas também para o grito desesperador de seu comandante.
As
sereias recebem sua parte. Na tragédia deve ter sido sua última
hora. Pois o direito das figuras míticas, que é o direito do mais
forte, vive tão-somente da impossibilidade de cumprir seu estatuto.
Se este é satisfeito, então tudo acabou para os mitos até sua mais
remota posteridade.