Syro
Cabral de Oliveira
É
fato que estamos
vivendo um
período muito inusitado da
história
da humanidade. Período
esse que
se coloca toda a espécie de saber genuíno como absolutamente
inútil. O saber filosófico, infelizmente,
também, não
poderia
escapar-se
dessa
onda
perversa,
voltada apenas
para os chamados saberes úteis
– embora todos os verdadeiros estudiosos tenham clara consciência
de que a filosofia é o fundamento de todas as outras espécies de
saberes, sejam eles científicos, religiosos, teóricos ou
pragmáticos.
Note-se,
atualmente, a que estado deprimente, ou melhor, a que estado de
decadência a nossa rainha chegou, sobretudo quando se afirma que a
filosofia precisa da democracia para existir. Ora, na
sua origem, a
filosofia
se assemelhava a uma mulher difícil – e quão era impossível
conquistar os seus favores! –, agora, vive a
mendigar
e a procura de casamento com uma outra mulher, deploravelmente,
vulgar, para poder se
sobreviver ou para não ser banida das grades curriculares do Ensino
Médio.
Por
uma certa amnésia ou por uma determinada carência de conhecimento,
nossos governantes de então se esquecem que a filosofia é análoga
ao centro de uma circunferência, figura esta, cujos múltiplos raios
partem todos de sua extremidade e se convergem para um único ponto
central. Assim, também, são todos os saberes humanos, sejam eles
científicos ou não, quando entram em crise, recorrem a nossa pobre
e moribunda rainha a busca de socorro. E não é à toa que os
religiosos fundaram seus cursos de teologia.
Esse
desprezo total para com a nossa rainha se dá, naturalmente, em
virtude de que o ser humano tornou-se muito ingrato àquilo em que
lhe serviu de base para toda a sua vida. Assim, notamos,
com toda
clareza,
essa atitude entre jovens
filhos e também entre
alunos. Quando alcançam sucesso na vida, depois de um certo
amadurecimento cultural, ignoram o real esforço que os seus pais ou
os seus professores exerceram, respectivamente, para lhes
proporcionar as condições favoráveis para tal fim. Passam eles,
então, a pensar que atingiram o patamar em que se encontram por
conta própria.
É,
infelizmente, a ingratidão de determinadas profissões, tais como a
dos professores, que formam o médico, o engenheiro, o advogado, o
presidente da república, o governador do estado ou da província, o
prefeito do município e outros que se tornam pessoas bem-sucedidas,
profissionalmente, na vida. Isso se dá, simplesmente, porque pensam
que o processo de conhecimento se desenvolve neles naturalmente, sem
intervenção ou qualquer tipo de provocação advinda
de uma outra pessoa. Assim, não reconhecem, portanto, que seu
sucesso se deu, na verdade, em função de um certo
estímulo inicial que fez com que os levasse a descobrirem
o
seu próprio caminho
entre tantos
outros.
Seja
lá, porém,
como for, se concebermos a educação como alguma coisa que tem por
objetivo a formação do homem em sua plenitude, temos que,
necessariamente, também, entendê-la como um processo, isto é, como
algo que se dá em conformidade com um certo movimento. Mas, um
movimento que vai sempre se desenvolvendo e progredindo no sentido de
ultrapassar as fases menos ricas para as mais ricas, sem deixar de
manter compreendida a fase anterior no seio da posterior. Isto por
que entendemos que os bens culturais são de natureza transcendente
ao indivíduo e, portanto, inerente à essência humana. Assim
compreendida, a educação deve ser, criteriosamente, desenvolvida no
ser humano, desde sua mais tenra idade, de
modo
a formar
nele um bom hábito, isto é, um bom
hábito de
vida que
lhe permita agir dentro dos limites que lhe
proporcione uma prática de vida inteiramente moderada e feliz.
Pensando assim, quando um determinado adolescente tiver adquirido e
afeiçoado este hábito, as pessoas que se encontram ao seu redor,
logo reconhecerão suas virtudes apenas pelas suas ações. É o
momento então que se deu, de modo acabado e pleno, a tão esperada
união entre o pensar e o agir, ou melhor, entre a teoria e a
prática. Ora, é neste momento que se percebe a polidez e a finura
do homem que se deixa guiar pelos valores que lhe proporcionaram a
boa alimentação da alma.
Nenhum
país, felizmente, se desenvolverá de maneira sustentada se os seus
governantes não investirem, com toda eficácia, no seu maior
patrimônio, ou seja, o seu povo. Este investimento deverá se dar
através de um processo evolutivo e continuado na ordem do
crescimento espiritual do seu povo, pois é um grande engano pensar
que o progresso de ordem material de uma nação sobrepujará, de
modo duradouro, o de natureza espiritual. Todo país que procurou
trilhar nas sendas que levam a um progresso, ilusoriamente rápido,
de ordem material fracassou inteiramente. Ora, um modelo educativo
que prima pelo progresso efetivo do homem tem que ser,
necessariamente, de uma ordem de crescimento do interior para o
exterior, ou seja, de natureza espiritual. Nesse sentido, não se
pode preocupar com o tempo que o adolescente vai necessitar para
atingir a sua plenitude de evolução espiritual, pois sabemos que o
processo evolutivo dessa natureza é lento e, além disso, varia de
pessoa para pessoa no que se refere ao seu crescimento intelectual.
Se pensarmos que ao destinarmos apenas um par de horas de aula, por
semana, para determinar uma boa formação do adolescente, no
que se refere à formação
de um
bom caráter, seria, no mínimo, uma tolice, semelhante
à de
pensarmos que alguém encheria uma garrafa de água derramando sobre
a mesma, de uma só vez, um tonel inteiro desse precioso líquido.
Assim, como a água despejada sobre a garrafa se perderia toda ou
quase toda por todos os seus lados de fora e, nesse caso, a garrafa
permaneceria tal como antes de se ter derramado o líquido em
referência sobre ela ou quase como antes, o que pouco alteraria a
sua natureza relativamente ao conteúdo, também querer passar um
oceano de conteúdos ou conceitos filosóficos a um determinado
jovem, em poucas horas por semana, seria, talvez, conscientemente,
ou, em última análise, por ignorância, ou, ainda,
por uma verdadeira tentativa de confundi-lo ou de fazer com que este
jovem passe a odiar tal campo do conhecimento. Seria talvez, também,
uma verdadeira tentativa de se antever e/ou de se vislumbrar o perigo
ou a ameaça que o ensino da filosofia poderia causar
à ordem de poder constituído, egoisticamente, em nossa atualidade.
Como
é sabido de todos, a filosofia, por sua natureza, é de fato a base
cultural humana que prima, essencialmente, sem nenhum subterfúgio,
para a genuína formação do homem em sua totalidade, quer no seu
aspecto mental quer no físico. Isto por que, os gregos antigos,
verdadeiros pais desse modo de pensar, ao contrário de outros “povos
que criaram um código de leis”, não procuraram uma cultura
artificial para impor aos seres humanos, mas “buscaram a lei
que
age nas próprias coisas, procuraram reger por ela a vida e o
pensamento do homem”1.
Desse modo, o ensino da filosofia, nas escolas oficiais, deveria
iniciar-se desde os primeiros dias de ingresso do aluno nestes
estabelecimentos de ensino e também deveria ser destinada a ela, a
filosofia, uma carga horária muito maior, em relação a que
atualmente é destinada, aqui, no Brasil, a exemplo de países
desenvolvidos. Isto por que, a verdadeira educação se dá, de fato,
por meio de um processo lento e repetitivo, fazendo com que, após um
longo período, os conteúdos administrados ou lecionados passem,
naturalmente, a fazer parte integrante do caráter dos jovens e logo
penetrando a toda a sociedade. Como diz Platão, filósofo grego, “A
verdadeira filosofia, uma vez aprendida, nunca mais se esquece, tão
simples é”.
Como
diz, acertadamente,
Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO, por ocasião do Dia Mundial
da Filosofia, 17 de novembro de 2016: a filosofia
“é
uma prática diária que ajuda as pessoas a viverem de uma forma
melhor e mais humana. O questionamento filosófico é aprendido e
aperfeiçoado desde a mais tenra idade, como uma chave essencial para
inspirar o debate público e defender o humanismo, que sofre por
causa da violência e das tensões existentes no mundo. A filosofia
não oferece quaisquer soluções prontas, mas sim uma busca perpétua
para questionar o mundo e tentar encontrar um lugar nele.”
Assim,
um bom curso de filosofia deveria iniciar-se com uma introdução ao
pensamento mítico, para que o jovem perceba, com toda clareza, a
passagem deste tipo de pensamento ao pensamento racional propriamente
dito. Neste momento, o objetivo último seria, com efeito, o de
romper com determinadas crenças, quebrar velhos e arraigados
paradigmas, e também, o de ruir sólidas e antigas estruturas
culturais, de aspectos doutrinadores, que, infelizmente, só servem
de empecilhos ao pleno desenvolvimento de uma visão global de mundo
de nossos jovens.
Em
um segundo momento, dever-se-ia intensificar luzes sobre os conteúdos
relativos ao âmbito da teoria do conhecimento, procurando
conscientizar os jovens acerca da importância dos modos pelos quais
conhecemos as coisas e também quais são os modos de conhecimento,
abrindo assim caminho para as pesquisas científicas. Tendo um certo
domínio desse âmbito do conhecimento, os jovens saberiam aplicar,
com toda eficácia, os métodos de investigação que são,
seguramente, apropriados a cada campo específico do conhecimento
humano.
Além
dessas fases anteriores, dever-se-ia procurar efetivar, com rigor, a
verdadeira formação do homem, por meio da efetiva interiorização
dos valores morais positivos, através dos conceitos inerentes à
área da Filosofia Moral.
Por
meio da reflexão filosófica, seria possível que o jovem aprendesse
e, naturalmente, assemelhasse os valores morais positivos, que têm,
por fim último, contribuir para um melhor norte para uma vida
promissora, plena de sucesso e realizações pessoais, porque é aqui
que ele também incorporaria uma práxis de vida que o faria com que
conseguisse unir a tão desejada teoria à prática. Esta fase não é
nada mais do que uma propedêutica do jovem para sua entrada na vita
activa,
a qual não significa outra coisa senão a área
política, entendida como um exercício pleno da Ética. Isto por que
estamos cônscios de que os homens erram não porque querem, mas
porque ignoram as consequências de suas ações. Se, de fato, eles
conhecessem os valores morais positivos e os tivessem interiorizado
em sua plenitude, com toda certeza, não se corromperiam, com tanta
facilidade, como observamos atualmente. Neste aspecto, o que se visa,
realmente, aqui, com a educação filosófica, é o despertar do
jovem para o seu autoconhecimento, a conscientização de seus
próprios atos e a realização do sujeito autoafirmativo.
Além
disso, o jovem inserido nesse mundo de conceitos – conceitos
filosóficos – compreenderia melhor as verdadeiras relações que
implicam seu modo de pensar e agir no seu dia a dia.
Consequentemente, uma nova consciência ou clareza de mente iria daí
emergir, para que, com isso, este jovem pudesse se libertar dos seus
preconceitos e ilusões que o levem a pensar que sabia o que de fato
não sabia e assim torná-lo-ia mais preparado para se lançar à
descoberta da verdadeira natureza das coisas que o cercam. Com isso,
ficaria claro, para ele, que não lhe foi dado um caminho pronto,
mas, ao contrário, um caminho
– um método –
para
que com este ele possa descobrir o seu próprio caminho e assim
romper e quebrar os velhos e arraigados paradigmas que funcionam como
uma espécie de óculos, cujas lentes só servem para deixar o
usuário vesgo.
E
finalmente, este jovem – através de uma formação esmerada –
iria se tornar inteiramente
pronto para entender que todas as suas ações e concepções de
mundo não são outra coisa senão um produto das influências do
mundo que o circunscreve e que, de um certo modo, foi-lhe impostas.
Além disso, iria se conscientizar, também, de que até então não
passava de um verdadeiro marionete ou fantoche, conduzido por cordas
dispostas ocultamente, como Platão bem ilustra, com toda clareza, no
seu mito da caverna, em sua obra
República.
1
JAEGER, Werner. Paidéia.