sexta-feira, 10 de junho de 2011

DIALÉTICA HEGELIANA*

 Syro Cabral de Oliveira


Hegel, em seu sistema filosófico, mostra que o homem se desenvolve dentro de um processo histórico. Sua consciência evolui, passando assim por vários níveis, até alcançar o mais alto estágio. Na verdade, o que há é uma historicidade do homem. Nesse sentido, o pensamento hegeliano, na Fenomenologia do espírito, desdobra-se em três momentos fundamentais: Consciência, Autoconsciência e Razão.

O primeiro momento é caracterizado como um momento de uma consciência ingênua, onde ainda não há distinção entre o homem e as coisas. O homem, neste momento, é meramente contemplativo e sua consciência se revela num sentido exterior, pois ainda se encontra numa fase de grande confusão entre o sujeito e o objeto. Aqui, o sujeito é absorvido pelo objeto. Não há separação e, portanto, não a havendo, esta fase inicia-se no Absoluto.

O segundo momento é caracterizado pela autoconsciência. Aqui, estamos no reino da contradição. O homem, por exemplo, tem consciência de si e do outro. Portanto, há duas consciências em confronto, uma querendo dominar a outra. Neste momento começa a luta. Duas consciências em luta, uma terá que ser necessariamente vencida, mas aquela que for vencida, não pode ser aniquilada, apenas negada, pois a consciência vencedora necessita do reconhecimento por parte daquela que foi vencida.

E finalmente, temos a Razão, a qual é o homem em-si e para-si. É neste momento que “o pensamento humano vai dizer o que é o Mundo e a vida, mas vai dizê-lo racionalmente”.

Mas é bom notar que no primeiro momento, o qual representa a consciência, há uma fase de desejo apenas a nível animal. O homem deseja uma fruta para satisfazer uma necessidade fisiológica, isto é, alimentar-se. Neste sentido, estamos diante de um primeiro desejo, isto é, “um desejo sensual: o desejo de comer”, por exemplo. Aqui, o homem procura suprimir ou transformar o objeto, assimilando-o.

Mas o desejo meramante a nível de satisfazer uma necessidade fisiológica é incompleto. O homem, por exemplo, come uma fruta, come outra e outra e o desejo só é satisfeito momentaneamente. O desejo é satisfeito momentaneamente porque estamos em outra esfera, ou seja, na esfera do desejo humano e não mais animal. O desejo agora constitui em desejo humano. Portanto, é aí que se dá o outro nível da consciência, quer dizer, a autoconsciência. É neste reino que há o confronto. Em primeiro lugar, o confronto se dá porque o desejo do homem não é mais um desejo natural. Dois desejos não-naturais entram em luta, porque ambos querem dominar e, nessa luta, tem que sair necessariamente um vencedor. Em segundo lugar, o homem deseja o Absoluto e, ao desejar o Absoluto, seu desejo torna-se irrealizável. Irrealizável porque o homem é finito e o Absoluto é infinito.

Partindo desses pressupostos, percebe-se que o pensamento hegeliano identifica a realidade como um processo dinâmico e não algo estático, como querem alguns filósofos do passado. É aí, portanto, que o pensamento dialético ganha dimensão. Hegel vê, de maneira clara, que é no reino das contradições que o processo dialético encontra suas bases. Assim ele conclui que a dialética é a lei da realidade e que qualquer coisa se funda no seu contrário, como, por exemplo, o que fundamenta o Criador é a criatura.

Ao contrário dos antigos, os quais achavam que a dialética se fundamentava numa dicotomia, a dialética hegeliana repousa numa tricotomia e ainda mais, a dialética, para Hegel, é um processo que evolui historicamente num movimento ascendente em busca de uma Perfeição. Este processo se perfaz através de três momentos: afirmação, negação e negação da negação, o que equivale a dizer: tese, antítese e síntese, respectivamente. Pensamos que não há exemplo melhor do que citar o próprio Hegel:

O botão desaparece no desabrochar da flor e pode-se dizer que é refutado pela flor. Igualmente, a flor se explica por meio do fruto como um falso existir da planta e o fruto surge em lugar da flor como verdade da planta. Essas formas não apenas se distinguem, mas se repelem como incompatíveis entre si. Mas sua natureza fluida as torna, ao mesmo tempo, momentos da unidade orgânica na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe tão necessariamente quanto a outra; e é unicamente essa igual necessidade que constitui a vida do todo. (Hegel, prefácio da Fenomenologia do espírito).

É bom notar que Hegel mostra neste exemplo que os momentos de refutação fazem parte de um todo, sua “natureza fluida” constitui simultaneamente “uma unidade orgânica na qual não somente não entram em conflito, mas uma existe tão necessariamente quanto a outra”.

Assim, parece-nos que fica evidente que o Absoluto é o mesmo que a realidade total, isto é, uma totalidade que reúne em si própria as diferenças e as contradições. Há no seio da natureza passagem de um oposto a outro, mas de modo que haja uma harmonia. Assim, escreve Hegel n'A Ciência da lógica: “O verdadeiro é o todo” e continua: “o todo é igual às partes e as partes são iguais ao todo. Não há nada no todo que não se encontra nas partes e nada nas partes que não se encontra no todo. O todo não é uma unidade abstrata, mas a unidade duma diversidade multiforme”.

Portanto, os opostos, em Hegel, têm que coexistir para que haja uma espécie de reconhecimento na luta exercida no interior da realidade. “O verdadeiro é o todo” porque não podem existir as partes isoladas, como, por exemplo, o pai não pode existir se não há pelo menos um filho, nem se pode falar em justiça se não há injustiça.


quinta-feira, 19 de maio de 2011

Tradição e Modernidade (Hannah Arendt e Habermas)

Syro Cabral de Oliveira


Hannah Arendt, uma pensadora de origem judia e grande estudiosa do modelo político da Grécia antiga, em contraposição ao pensador alemão Habermas – o qual se propõe a entender a modernidade e a sua fundamentação a partir de seus próprios elementos –, procura encontrar uma saída para a crise da modernidade se inspirando na concepção política grega. Arendt está convencida de que a solução para a modernidade deve se estabelecer a partir da restauração de um espaço público aos moldes daquele que se dava na polis grega, tendo assim por base os princípios aristotélicos; enquanto Habermas recusa, com toda veemência, tais princípios.

Pensamos, no entanto, que seria bom observar que Arendt não está aqui defendendo em hipótese alguma uma simples transposição do modelo político como era de fato adotado pelos gregos antigos – como querem alguns comentadores, os quais classificam-na como uma simples nostálgica –, mas, a nosso ver, o que ela na realidade defende é a essência daquele modelo, isto é, uma prática de fazer política fundada na ação comunicativa, como realmente se dava na polis grega. Esse modo deve ser naturalmente adaptado à realidade atual.

Como na Grécia antiga, segundo Arendt, havia uma nítida distinção entre o privado e o público, sendo a esfera pública o lugar propriamente dito do exercício da política, isto é, o lugar da ação e do discurso, e o privado como condição necessária de acesso ao público, ou seja, a saída da necessidade para o reino da liberdade, dada a perda de tais conceituações dessas duas esferas, ela acredita que o mundo perdeu também o lugar do “agir em comum” e, portanto, é preciso que se resgatem esses valores que foram esquecidos.

Entretanto, quando se fala em discurso em Arendt é bom salientarmos que ela não quer enfatizar um tipo de discurso ao estilo do paradigma da comunicação de Habermas, mas um “discurso como meio de persuasão”. Para ela “O ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência”1, o que era “característico da organização do lar privado”2. Inversamente, quando Habermas fala em comunicação, está se referindo a um princípio eminentemente racional.

Portanto, quando se leva em consideração o aspecto filosófico, pode-se dizer que Habermas é um autor que está preocupado em pensar a realidade, ainda que sem pretensão de dar fundamentos absolutos. Seu modelo é eminentemente filosófico e pretende construir uma teoria crítica da sociedade. Enquanto Arendt é antes de tudo uma teórica política, que está preocupada com a experiência do fazer da vida pública. Ela se propõe, em uma de suas maiores obras A condição humana, fazer “uma reconsideração da condição humana à luz de nossas mais novas experiências e nossos temores mais recentes”3.

Ainda em seu livro acima mencionado, Arendt dá grande ênfase as categorias ação, poder e discurso. Isto por que tais categorias estão acima de tudo ligadas à atividade política, isto é, a mais alta atividade humana. Neste sentido, a ação é a condição de vida que corresponde à pluralidade. É nela que a vida se dá em sua plenitude, como sustentava também Aristóteles na Política. Os conceitos poder e discurso estão também compreendidos na condição de vida que corresponde à pluralidade. “Sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político”4, afirma ela. Ainda diz mais a autora acerca de tais conceitos: “Sem a ação para pôr em movimento no mundo o novo começo de que cada homem é capaz por haver nascido, ‘não há nada que seja novo debaixo do sol’; sem o discurso para materializar e celebrar, ainda que provisoriamente, as coisas novas que surgem e resplandecem, ‘não há memória’; sem a permanência duradoura do artifício humano, ‘não haverá recordação das coisas que têm de suceder depois de nós’. E sem o poder, o espaço da aparência produzido pela ação e discurso em público desaparecerá tão rapidamente como o ato ou a palavra viva”5. Tanto a ação como o discurso e o poder têm um caráter irreversível. Portanto, eles são atualíssimos e por serem atuais dependem da “pluralidade humana, da presença constante de outros”.

Ao contrário de Habermas, o qual vê o poder como algo que deriva de um consenso, Arendt define poder como alguma coisa que está diretamente ligada à pluralidade. Para ela o poder humano corresponde “à condição humana de pluralidade”.Em sua concepção, o poder jamais é propriedade de um indivíduo; ele pertence a um grupo. Habermas, nesse ponto, diverge muito de Arendt.

Habermas, por seu turno, concentra suas forças em seu conceito de agir comunicativo, o que, no fundo, é para ele um novo conceito de razão mais alargado. Não um conceito de razão como propõe os metafísicos. Mas um conceito de razão que tem por finalidade ser o mais abrangente possível, o qual não está vinculado a nenhum tipo de purismo. Seu projeto é mais do que nunca pensar a modernidade e pensá-la nesse novo conceito de razão – a razão comunicativa –, procurando entender a sua própria dialética.

Já Arendt procura buscar subsídio fora da modernidade, ou seja, nos princípios aristotélicos, os quais lhe servem como ponto básico para entendimento dos problemas dos dias de hoje.

Desse modo, os dois autores lutam no mesmo sentido, só que Habermas tem como ponto de partida o próprio projeto da modernidade, o qual não deve ser abandonado; ao passo que Arendt vai a busca de elementos fora dela na tentativa de recuperar as perdas de referências. Talvez, o motivo dessa investigação dos princípios básicos na tradição para entender os problemas da modernidade deve-se ao fato de que a maior parte de nossos problemas dá-se em virtude da perda de valores fundamentais em função de um avanço desordenado desta.

Bibliografia
ARENDT, Hannah, A condição humana, trad. De Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1993, 352 pp.
HABERMAS, Jürgen. El discurso filosófico de la modernidad, 12 lecciones, versión castellana de Manuel Jiménez Redondo, Altea, Taurus, 1989.
FERRY, Jean-Marc. “Habermas critique de Hannah Arendt”, Esprit, n° 42, Juin (1980): 109-124.
ROMAN, Joël. “Habermas, lecteur de Arendt: une confrontation philophique”, Les cahiers de philosophie, n° 4, automne (1987): 161-181.