sábado, 9 de abril de 2022

 

UM PROBLEMA DE ORDEM CONCEITUAL E SUAS IMPLICAÇÕES

Syro Cabral de Oliveira

 

                        Em primeiro de julho do ano 2002, um grupo de professores de Filosofia reuniu-se com uma professora supervisora de uma determinada escola técnica do Estado do Rio de Janeiro, a seu pedido.

                        O assunto que os moveu à reunião foi a controvérsia em torno de prova única aplicada aos alunos daquela escola. Segundo a referida professora supervisora, tal prova não deveria ter caráter avaliativo de conteúdo, mas sim o de avaliar habilidades e competências.

                        Enquanto, de um lado, a professora supervisora defendia a manutenção da referida prova, de um outro lado, os professores de Filosofia questionavam não o problema de sua manutenção ou não, mas a forma pela qual ela seria elaborada e seu aspecto avaliativo. Se de um lado, os professores permaneciam a sustentar a ideia de que não estavam contra a prova única propriamente dita, mas a forma pela qual ela seria elaborada, a supervisora tentava rebatê-los com argumentos de que estavam desinformados.

                        Nesse momento, desapareceu, obviamente, o objeto de acordo comum e, concomitantemente, a argumentação, pois, é fato que só há argumento se e somente se houver objeto de acordo comum. Na ausência de tal objeto, a argumentação cessa necessariamente e juntamente o feedback1.

                        Foi, então, nesse interregno da discussão que tais professores perceberam a verdadeira natureza do problema da professora supervisora.

                        Infelizmente, a professora incorria em dois erros conceituais. O primeiro estava ligado ao conceito de interdisciplinaridade, o qual, dizia a supervisora o ter adquirido com a leitura de um texto em que o autor o ilustrava com o mencionado conceito, recorrendo à orquestra sinfônica. No referido texto, segundo a professora, o autor afirmava que a interdisciplinaridade ocorre no momento em que os músicos seguem a marcação de tempos executada com a batuta, pelo regente.

                        Até aí não haveria nenhuma dificuldade, em princípio. A dificuldade começou, no entanto, no momento em que a professora fez uma analogia entre o conceito de interdisciplinaridade, utilizado na orquestra sinfônica e o conceito do mesmo termo, utilizado nas escolas de formação geral. É claro que o conceito de interdisciplinaridade no primeiro caso está relacionado à obediência, à ordem de funcionamento etc., que vai resultar na harmonia. Cada músico executa seu instrumento de acordo com a marcação do maestro. Não há interligação entre um músico e outro. O que importa são os sinais, ou movimentos, observados pelos músicos, executados pelo regente. Já no segundo caso, ou seja, nas escolas de formação geral, a interdisciplinaridade está diretamente relacionada ao conjunto das disciplinas, ou matérias, lecionadas. Neste caso, a interdisciplinaridade está ligada à capacidade de o professor fazer o aluno perceber que naturalmente é possível fazer uma leitura de cunho filosófico, histórico, geográfico de um único texto. Na verdade, é a visão de que o conhecimento é uma totalidade. Sua fragmentação é, simplesmente, um recurso didático para facilitar o processo de ensino-aprendizagem.

                        Devido às nossas necessidades atuais, procura-se privilegiar a interdisciplinaridade para superar a ideia que passou a predominar, a partir da Idade Moderna, da formação dos especialistas, isto é, cada profissional não tem necessidade de ser versado em diferentes habilidades. Pelo contrário, o que se exige dele é a qualificação isolada, aos extremos, em uma determinada atividade. E essa prática atinge seu auge, de maneira extraordinária, em meados do século XX, com o chamado período fordista.

                        Neste caso, o que está em jogo é a ideia de divisão de mão de obra. Cada indivíduo executa, isoladamente, uma determinada atividade, dando a perfeição ao produto final, sem a necessidade de uma qualificação que permita uma visão geral de todas as atividades isoladas.

                        Em um segundo momento, a professora sustentava que a saída para dar uma formação diversificada aos alunos seria a aplicação de uma prova única, que visasse não o conhecimento de conteúdo, mas as habilidades e competências. Ocorre, entretanto, nesse momento, que a professora incorria em outro erro, pois demonstrou não discernir, com clareza, o conceito de especialidade.

                        Ora, como ficou exposto acima, a especialidade é a capacidade que o indivíduo tem de exercer uma determinada atividade, de maneira isolada, sem depender de outros conhecimentos que não sejam específicos àquela atividade. É o caso, por exemplo, do músico de uma orquestra sinfônica, ou melhor ainda, dos metalúrgicos, em uma fábrica de automóvel, onde cada metalúrgico é um especialista, aos extremos, em uma determinada atividade, a ponto de não ter a menor noção do produto final que, no caso específico aqui, é o automóvel. Este torna-se, à vista de cada especialista, um fetiche. Nesse caso, o especialista não se reconhece na sua própria obra, a qual torna-se-lhe estranha. É o trabalhador alienado, em seu sentido rigoroso. E é isso que um bom educador deve combater, com todas as suas forças que as possa utilizar.

                        Pois bem. Vejamos, rapidamente, como surgiu a ideia da formação de especialista.

                        Da Grécia Antiga, até a Idade Média, a Filosofia designava a totalidade do conhecimento racional. A partir da Idade Moderna, “o vasto campo filosófico entrou num processo de redução”. A realidade a ser conhecida passou a ser dividida, recortada, despertando estudo especializado. Era a separação entre ciência e Filosofia.

                        Com o processo de especialização do mundo científico, cada ciência passou a investigar campos determinados da realidade e o faz “ainda hoje de forma cada vez mais localizada.” Hoje, vivemos uma era de especialistas, que se fecham em determinados domínios do saber e, com isso, perderam “a visão mais ampla do conhecimento humano.” Sabem muito sobre pouco e nada sobre a amplitude do conhecimento. O conhecimento tornou-se fragmentos da totalidade do universo do ser. “Nesse contexto, a Filosofia passou a ter o papel, entre outros, de recuperar a unidade do saber, de questionar a validade dos métodos e critérios adotados pelas ciências. Isto é, passou a desenvolver o trabalho de reflexão sobre os conhecimentos alcançados por todas as ciências, além da procura de respostas à finalidade, ao sentido e ao valor da vida e do mundo.”

                        No que foi exposto acima, a maior dificuldade, infelizmente, reside no que segue. É que a maioria de nossos professores é especialista e, como tal, não vê o mundo senão por meio desse ponto de vista, ou seja, da especialidade, à maneira dos freudianos e marxistas. Para os primeiros, todo indivíduo sofre de uma espécie de neurose, ao passo que, os últimos não veem outra coisa, nas sociedades, senão luta de classes. A prova dessa visão limitada, ou melhor, desse reducionismo, é que nossos alunos, e por que não alguns professores, também, passam o tempo todo questionando a importância das disciplinas, tais como, Filosofia, História, e outras afins, e nunca questionam acerca da real importância de matérias como Matemática, Física, Química etc. O que eles não percebem é que a maioria das pessoas vive na prática, no seu dia a dia, sem os conhecimentos dessas últimas disciplinas e, pelo contrário, não consegue viver sem os conceitos filosóficos, tais como, o de política, ética, justiça, direito, dever, liberdade, relação causa-efeito, ideia de grandeza, espaço etc. Tem esses conceitos não como descobertos ou elaborados, mas como coisas dadas. Vive, no seu dia a dia, com esses conceitos, inconscientemente, e não percebe sequer que, na verdade, são obra da criação humana e, portanto, não existem, em si mesmos, na realidade externa e sim somente em nossas mentes, como entes intramentais. Não percebe, também, que não cabe ao matemático, ao religioso, ao físico, ao especialista, em qualquer que seja sua área de atuação, perguntarem, respectivamente, pela natureza do número, da religião, do movimento, da especialidade, porque, estas questões são, naturalmente, de ordem filosófica e, como tal, são de exclusividade dos filósofos2. Não percebem, ainda, que é de exclusiva competência de os filósofos armarem sistemas tão claros como os diamantes sem jaça, que os leigos os seguem, com uma fé apodíctica, como fossem obras divinas. E, além disso, que os fundamentos de todas as ciências se acham na Filosofia. E daí, com toda justeza, ser denominada de rainha. E, por último, não conseguem perceber, também, que ao matemático cabe apenas admitir a existência a priori dos números e operar com eles. A pergunta se os números existem em si mesmos ou não, se são entes ontológicos ou entes de razão, é exclusivamente da competência dos filósofos. Portanto, os cientistas operam com um mundo já dado, de antemão, e uma grande parte deles não percebe sequer que foram os filósofos que lhe deram sentido.

                        Sem esses conceitos explicitados pelos filósofos, não poderíamos, talvez, sequer caminhar, com tanta desenvoltura e com toda segurança de que o sol é uma estrela de quinta grandeza, em uma manhã ensolarada, pelas ruas das cidades…

1(…) No relacionamento entre pessoas, ‘damos’ feedback a alguém quando oferecemos ao outro oportunidade para explorar alternativas sobre o que percebemos a respeito delas, e ‘recebemos’ feedback ao percebermos como o outro reage a nós. Neste sentido, feedback nos permite ver, como num, em um enfoque crítico, a adequação ou a inadequação de nossas ideias, sentimentos ou ações – Dicionário de Comunicação, Ed. Codecri.

2. Designamos de filósofo não necessariamente quem passou por uma academia – isto porque as nossas atuais academias são verdadeiros leitos de Procusto, cuja função não é outra senão a de propriamente castrar o verdadeiro filosofar mais do que fomentá-lo –, mas aquele que possui uma predisposição natural para tal.