UM PROBLEMA DE ORDEM CONCEITUAL E SUAS IMPLICAÇÕES
Syro
Cabral de Oliveira
Em primeiro de julho do
ano 2002, um grupo de professores de Filosofia reuniu-se com uma professora
supervisora de uma determinada escola técnica do Estado do Rio de Janeiro, a
seu pedido.
O assunto que os moveu à
reunião foi a controvérsia em torno de prova única aplicada aos alunos daquela
escola. Segundo a referida professora supervisora, tal prova não deveria ter
caráter avaliativo de conteúdo, mas sim o de avaliar habilidades e
competências.
Enquanto, de um lado, a
professora supervisora defendia a manutenção da referida prova, de um outro
lado, os professores de Filosofia questionavam não o problema de sua manutenção
ou não, mas a forma pela qual ela seria elaborada e seu aspecto avaliativo. Se
de um lado, os professores permaneciam a sustentar a ideia de que não estavam
contra a prova única propriamente dita, mas a forma pela qual ela seria
elaborada, a supervisora tentava rebatê-los com argumentos de que estavam
desinformados.
Nesse momento,
desapareceu, obviamente, o objeto de acordo comum e, concomitantemente, a
argumentação, pois, é fato que só há argumento se e somente se houver objeto de
acordo comum. Na ausência de tal objeto, a argumentação cessa necessariamente e
juntamente o feedback1.
Foi, então, nesse
interregno da discussão que tais professores perceberam a verdadeira natureza
do problema da professora supervisora.
Infelizmente, a
professora incorria em dois erros conceituais. O primeiro estava ligado ao
conceito de interdisciplinaridade, o qual, dizia a supervisora o ter
adquirido com a leitura de um texto em que o autor o ilustrava com o mencionado
conceito, recorrendo à orquestra sinfônica. No referido texto, segundo a
professora, o autor afirmava que a interdisciplinaridade ocorre no momento em
que os músicos seguem a marcação de tempos executada com a batuta, pelo
regente.
Até aí não haveria
nenhuma dificuldade, em princípio. A dificuldade começou, no entanto, no
momento em que a professora fez uma analogia entre o conceito de
interdisciplinaridade, utilizado na orquestra sinfônica e o conceito do mesmo
termo, utilizado nas escolas de formação geral. É claro que o conceito de
interdisciplinaridade no primeiro caso está relacionado à obediência, à ordem
de funcionamento etc., que vai resultar na harmonia. Cada músico executa seu
instrumento de acordo com a marcação do maestro. Não há interligação entre um
músico e outro. O que importa são os sinais, ou movimentos, observados pelos
músicos, executados pelo regente. Já no segundo caso, ou seja, nas escolas de
formação geral, a interdisciplinaridade está diretamente relacionada ao
conjunto das disciplinas, ou matérias, lecionadas. Neste caso, a
interdisciplinaridade está ligada à capacidade de o professor fazer o aluno
perceber que naturalmente é possível fazer uma leitura de cunho filosófico,
histórico, geográfico de um único texto. Na verdade, é a visão de que o
conhecimento é uma totalidade. Sua fragmentação é, simplesmente, um recurso
didático para facilitar o processo de ensino-aprendizagem.
Devido às nossas
necessidades atuais, procura-se privilegiar a interdisciplinaridade para
superar a ideia que passou a predominar, a partir da Idade Moderna, da formação
dos especialistas, isto é, cada profissional não tem necessidade de ser versado
em diferentes habilidades. Pelo contrário, o que se exige dele é a qualificação
isolada, aos extremos, em uma determinada atividade. E essa prática atinge seu
auge, de maneira extraordinária, em meados do século XX, com o chamado período
fordista.
Neste caso, o que está
em jogo é a ideia de divisão de mão de obra. Cada indivíduo executa,
isoladamente, uma determinada atividade, dando a perfeição ao produto final,
sem a necessidade de uma qualificação que permita uma visão geral de todas as
atividades isoladas.
Em um segundo momento, a
professora sustentava que a saída para dar uma formação diversificada aos
alunos seria a aplicação de uma prova única, que visasse não o conhecimento de
conteúdo, mas as habilidades e competências. Ocorre, entretanto, nesse momento,
que a professora incorria em outro erro, pois demonstrou não discernir, com
clareza, o conceito de especialidade.
Ora, como ficou exposto
acima, a especialidade é a capacidade que o indivíduo tem de exercer uma
determinada atividade, de maneira isolada, sem depender de outros conhecimentos
que não sejam específicos àquela atividade. É o caso, por exemplo, do músico de
uma orquestra sinfônica, ou melhor ainda, dos metalúrgicos, em uma fábrica de
automóvel, onde cada metalúrgico é um especialista, aos extremos, em uma
determinada atividade, a ponto de não ter a menor noção do produto final que,
no caso específico aqui, é o automóvel. Este torna-se, à vista de cada especialista,
um fetiche. Nesse caso, o especialista não se reconhece na sua própria obra, a
qual torna-se-lhe estranha. É o trabalhador alienado, em seu sentido rigoroso.
E é isso que um bom educador deve combater, com todas as suas forças que as
possa utilizar.
Pois bem. Vejamos,
rapidamente, como surgiu a ideia da formação de especialista.
Da Grécia Antiga, até a
Idade Média, a Filosofia designava a totalidade do conhecimento racional. A
partir da Idade Moderna, “o vasto campo filosófico entrou num processo de
redução”. A realidade a ser conhecida passou a ser dividida, recortada,
despertando estudo especializado. Era a separação entre ciência e
Filosofia.
Com o processo de
especialização do mundo científico, cada ciência passou a investigar campos
determinados da realidade e o faz “ainda hoje de forma cada vez mais
localizada.” Hoje, vivemos uma era de especialistas, que se fecham em
determinados domínios do saber e, com isso, perderam “a visão mais ampla do
conhecimento humano.” Sabem muito sobre pouco e nada sobre a amplitude do
conhecimento. O conhecimento tornou-se fragmentos da totalidade do universo do
ser. “Nesse contexto, a Filosofia passou a ter o papel, entre outros, de
recuperar a unidade do saber, de questionar a validade dos métodos e critérios
adotados pelas ciências. Isto é, passou a desenvolver o trabalho de reflexão
sobre os conhecimentos alcançados por todas as ciências, além da procura de
respostas à finalidade, ao sentido e ao valor da vida e do mundo.”
No que foi exposto
acima, a maior dificuldade, infelizmente, reside no que segue. É que a maioria
de nossos professores é especialista e, como tal, não vê o mundo senão por meio
desse ponto de vista, ou seja, da especialidade, à maneira dos freudianos e
marxistas. Para os primeiros, todo indivíduo sofre de uma espécie de neurose,
ao passo que, os últimos não veem outra coisa, nas sociedades, senão luta de
classes. A prova dessa visão limitada, ou melhor, desse reducionismo, é que
nossos alunos, e por que não alguns professores, também, passam o tempo todo
questionando a importância das disciplinas, tais como, Filosofia, História, e
outras afins, e nunca questionam acerca da real importância de matérias como
Matemática, Física, Química etc. O que eles não percebem é que a maioria das
pessoas vive na prática, no seu dia a dia, sem os conhecimentos dessas últimas
disciplinas e, pelo contrário, não consegue viver sem os conceitos filosóficos,
tais como, o de política, ética, justiça, direito, dever, liberdade, relação
causa-efeito, ideia de grandeza, espaço etc. Tem esses conceitos não como
descobertos ou elaborados, mas como coisas dadas. Vive, no seu dia a dia, com
esses conceitos, inconscientemente, e não percebe sequer que, na verdade, são
obra da criação humana e, portanto, não existem, em si mesmos, na realidade
externa e sim somente em nossas mentes, como entes intramentais. Não percebe,
também, que não cabe ao matemático, ao religioso, ao físico, ao especialista,
em qualquer que seja sua área de atuação, perguntarem, respectivamente, pela
natureza do número, da religião, do movimento, da especialidade, porque, estas
questões são, naturalmente, de ordem filosófica e, como tal, são de
exclusividade dos filósofos2. Não percebem, ainda, que é de
exclusiva competência de os filósofos armarem sistemas tão claros como os
diamantes sem jaça, que os leigos os seguem, com uma fé apodíctica, como fossem
obras divinas. E, além disso, que os fundamentos de todas as ciências se acham
na Filosofia. E daí, com toda justeza, ser denominada de rainha. E, por último,
não conseguem perceber, também, que ao matemático cabe apenas admitir a
existência a priori dos números e operar com eles. A pergunta se os
números existem em si mesmos ou não, se são entes ontológicos ou entes de razão,
é exclusivamente da competência dos filósofos. Portanto, os cientistas operam
com um mundo já dado, de antemão, e uma grande parte deles não percebe sequer
que foram os filósofos que lhe deram sentido.
Sem esses conceitos
explicitados pelos filósofos, não poderíamos, talvez, sequer caminhar, com
tanta desenvoltura e com toda segurança de que o sol é uma estrela de quinta
grandeza, em uma manhã ensolarada, pelas ruas das cidades…
1(…)
No relacionamento entre pessoas, ‘damos’ feedback a alguém quando
oferecemos ao outro oportunidade para explorar alternativas sobre o que
percebemos a respeito delas, e ‘recebemos’ feedback ao percebermos como
o outro reage a nós. Neste sentido, feedback nos permite ver, como num,
em um enfoque crítico, a adequação ou a inadequação de nossas ideias,
sentimentos ou ações – Dicionário de Comunicação, Ed. Codecri.
2. Designamos de filósofo não
necessariamente quem passou por uma academia – isto porque as nossas atuais
academias são verdadeiros leitos de Procusto, cuja função não é outra senão a
de propriamente castrar o verdadeiro filosofar mais do que fomentá-lo –, mas
aquele que possui uma predisposição natural para tal.
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