quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A IMPORTÂNCIA E O VALOR DA FILOSOFIA

Syro Cabral de Oliveira


É fato que estamos vivendo um período muito inusitado da história da humanidade. Período esse que se coloca toda a espécie de saber genuíno como absolutamente inútil. O saber filosófico, infelizmente, também, não poderia escapar-se dessa onda perversa, voltada apenas para os chamados saberes úteis – embora todos os verdadeiros estudiosos tenham clara consciência de que a filosofia é o fundamento de todas as outras espécies de saberes, sejam eles científicos, religiosos, teóricos ou pragmáticos.

Note-se, atualmente, a que estado deprimente, ou melhor, a que estado de decadência a nossa rainha chegou, sobretudo quando se afirma que a filosofia precisa da democracia para existir. Ora, na sua origem, a filosofia se assemelhava a uma mulher difícil – e quão era impossível conquistar os seus favores! –, agora, vive a mendigar e a procura de casamento com uma outra mulher, deploravelmente, vulgar, para poder se sobreviver ou para não ser banida das grades curriculares do Ensino Médio.


Por uma certa amnésia ou por uma determinada carência de conhecimento, nossos governantes de então se esquecem que a filosofia é análoga ao centro de uma circunferência, figura esta, cujos múltiplos raios partem todos de sua extremidade e se convergem para um único ponto central. Assim, também, são todos os saberes humanos, sejam eles científicos ou não, quando entram em crise, recorrem a nossa pobre e moribunda rainha a busca de socorro. E não é à toa que os religiosos fundaram seus cursos de teologia.


Esse desprezo total para com a nossa rainha se dá, naturalmente, em virtude de que o ser humano tornou-se muito ingrato àquilo em que lhe serviu de base para toda a sua vida. Assim, notamos, com toda clareza, essa atitude entre jovens filhos e também entre alunos. Quando alcançam sucesso na vida, depois de um certo amadurecimento cultural, ignoram o real esforço que os seus pais ou os seus professores exerceram, respectivamente, para lhes proporcionar as condições favoráveis para tal fim. Passam eles, então, a pensar que atingiram o patamar em que se encontram por conta própria.


É, infelizmente, a ingratidão de determinadas profissões, tais como a dos professores, que formam o médico, o engenheiro, o advogado, o presidente da república, o governador do estado ou da província, o prefeito do município e outros que se tornam pessoas bem-sucedidas, profissionalmente, na vida. Isso se dá, simplesmente, porque pensam que o processo de conhecimento se desenvolve neles naturalmente, sem intervenção ou qualquer tipo de provocação advinda de uma outra pessoa. Assim, não reconhecem, portanto, que seu sucesso se deu, na verdade, em função de um certo estímulo inicial que fez com que os levasse a descobrirem o seu próprio caminho entre tantos outros.


Seja lá, porém, como for, se concebermos a educação como alguma coisa que tem por objetivo a formação do homem em sua plenitude, temos que, necessariamente, também, entendê-la como um processo, isto é, como algo que se dá em conformidade com um certo movimento. Mas, um movimento que vai sempre se desenvolvendo e progredindo no sentido de ultrapassar as fases menos ricas para as mais ricas, sem deixar de manter compreendida a fase anterior no seio da posterior. Isto por que entendemos que os bens culturais são de natureza transcendente ao indivíduo e, portanto, inerente à essência humana. Assim compreendida, a educação deve ser, criteriosamente, desenvolvida no ser humano, desde sua mais tenra idade, de modo a formar nele um bom hábito, isto é, um bom hábito de vida que lhe permita agir dentro dos limites que lhe proporcione uma prática de vida inteiramente moderada e feliz. Pensando assim, quando um determinado adolescente tiver adquirido e afeiçoado este hábito, as pessoas que se encontram ao seu redor, logo reconhecerão suas virtudes apenas pelas suas ações. É o momento então que se deu, de modo acabado e pleno, a tão esperada união entre o pensar e o agir, ou melhor, entre a teoria e a prática. Ora, é neste momento que se percebe a polidez e a finura do homem que se deixa guiar pelos valores que lhe proporcionaram a boa alimentação da alma.


Nenhum país, felizmente, se desenvolverá de maneira sustentada se os seus governantes não investirem, com toda eficácia, no seu maior patrimônio, ou seja, o seu povo. Este investimento deverá se dar através de um processo evolutivo e continuado na ordem do crescimento espiritual do seu povo, pois é um grande engano pensar que o progresso de ordem material de uma nação sobrepujará, de modo duradouro, o de natureza espiritual. Todo país que procurou trilhar nas sendas que levam a um progresso, ilusoriamente rápido, de ordem material fracassou inteiramente. Ora, um modelo educativo que prima pelo progresso efetivo do homem tem que ser, necessariamente, de uma ordem de crescimento do interior para o exterior, ou seja, de natureza espiritual. Nesse sentido, não se pode preocupar com o tempo que o adolescente vai necessitar para atingir a sua plenitude de evolução espiritual, pois sabemos que o processo evolutivo dessa natureza é lento e, além disso, varia de pessoa para pessoa no que se refere ao seu crescimento intelectual. Se pensarmos que ao destinarmos apenas um par de horas de aula, por semana, para determinar uma boa formação do adolescente, no que se refere à formação de um bom caráter, seria, no mínimo, uma tolice, semelhante à de pensarmos que alguém encheria uma garrafa de água derramando sobre a mesma, de uma só vez, um tonel inteiro desse precioso líquido. Assim, como a água despejada sobre a garrafa se perderia toda ou quase toda por todos os seus lados de fora e, nesse caso, a garrafa permaneceria tal como antes de se ter derramado o líquido em referência sobre ela ou quase como antes, o que pouco alteraria a sua natureza relativamente ao conteúdo, também querer passar um oceano de conteúdos ou conceitos filosóficos a um determinado jovem, em poucas horas por semana, seria, talvez, conscientemente, ou, em última análise, por ignorância, ou, ainda, por uma verdadeira tentativa de confundi-lo ou de fazer com que este jovem passe a odiar tal campo do conhecimento. Seria talvez, também, uma verdadeira tentativa de se antever e/ou de se vislumbrar o perigo ou a ameaça que o ensino da filosofia poderia causar à ordem de poder constituído, egoisticamente, em nossa atualidade.


Como é sabido de todos, a filosofia, por sua natureza, é de fato a base cultural humana que prima, essencialmente, sem nenhum subterfúgio, para a genuína formação do homem em sua totalidade, quer no seu aspecto mental quer no físico. Isto por que, os gregos antigos, verdadeiros pais desse modo de pensar, ao contrário de outros “povos que criaram um código de leis”, não procuraram uma cultura artificial para impor aos seres humanos, mas “buscaram a lei que age nas próprias coisas, procuraram reger por ela a vida e o pensamento do homem”1. Desse modo, o ensino da filosofia, nas escolas oficiais, deveria iniciar-se desde os primeiros dias de ingresso do aluno nestes estabelecimentos de ensino e também deveria ser destinada a ela, a filosofia, uma carga horária muito maior, em relação a que atualmente é destinada, aqui, no Brasil, a exemplo de países desenvolvidos. Isto por que, a verdadeira educação se dá, de fato, por meio de um processo lento e repetitivo, fazendo com que, após um longo período, os conteúdos administrados ou lecionados passem, naturalmente, a fazer parte integrante do caráter dos jovens e logo penetrando a toda a sociedade. Como diz Platão, filósofo grego, “A verdadeira filosofia, uma vez aprendida, nunca mais se esquece, tão simples é”.


Como diz, acertadamente, Irina Bokova, diretora-geral da UNESCO, por ocasião do Dia Mundial da Filosofia, 17 de novembro de 2016: a filosofiaé uma prática diária que ajuda as pessoas a viverem de uma forma melhor e mais humana. O questionamento filosófico é aprendido e aperfeiçoado desde a mais tenra idade, como uma chave essencial para inspirar o debate público e defender o humanismo, que sofre por causa da violência e das tensões existentes no mundo. A filosofia não oferece quaisquer soluções prontas, mas sim uma busca perpétua para questionar o mundo e tentar encontrar um lugar nele.”


Assim, um bom curso de filosofia deveria iniciar-se com uma introdução ao pensamento mítico, para que o jovem perceba, com toda clareza, a passagem deste tipo de pensamento ao pensamento racional propriamente dito. Neste momento, o objetivo último seria, com efeito, o de romper com determinadas crenças, quebrar velhos e arraigados paradigmas, e também, o de ruir sólidas e antigas estruturas culturais, de aspectos doutrinadores, que, infelizmente, só servem de empecilhos ao pleno desenvolvimento de uma visão global de mundo de nossos jovens.


Em um segundo momento, dever-se-ia intensificar luzes sobre os conteúdos relativos ao âmbito da teoria do conhecimento, procurando conscientizar os jovens acerca da importância dos modos pelos quais conhecemos as coisas e também quais são os modos de conhecimento, abrindo assim caminho para as pesquisas científicas. Tendo um certo domínio desse âmbito do conhecimento, os jovens saberiam aplicar, com toda eficácia, os métodos de investigação que são, seguramente, apropriados a cada campo específico do conhecimento humano.


Além dessas fases anteriores, dever-se-ia procurar efetivar, com rigor, a verdadeira formação do homem, por meio da efetiva interiorização dos valores morais positivos, através dos conceitos inerentes à área da Filosofia Moral.


Por meio da reflexão filosófica, seria possível que o jovem aprendesse e, naturalmente, assemelhasse os valores morais positivos, que têm, por fim último, contribuir para um melhor norte para uma vida promissora, plena de sucesso e realizações pessoais, porque é aqui que ele também incorporaria uma práxis de vida que o faria com que conseguisse unir a tão desejada teoria à prática. Esta fase não é nada mais do que uma propedêutica do jovem para sua entrada na vita activa, a qual não significa outra coisa senão a área política, entendida como um exercício pleno da Ética. Isto por que estamos cônscios de que os homens erram não porque querem, mas porque ignoram as consequências de suas ações. Se, de fato, eles conhecessem os valores morais positivos e os tivessem interiorizado em sua plenitude, com toda certeza, não se corromperiam, com tanta facilidade, como observamos atualmente. Neste aspecto, o que se visa, realmente, aqui, com a educação filosófica, é o despertar do jovem para o seu autoconhecimento, a conscientização de seus próprios atos e a realização do sujeito autoafirmativo.


Além disso, o jovem inserido nesse mundo de conceitos – conceitos filosóficos – compreenderia melhor as verdadeiras relações que implicam seu modo de pensar e agir no seu dia a dia. Consequentemente, uma nova consciência ou clareza de mente iria daí emergir, para que, com isso, este jovem pudesse se libertar dos seus preconceitos e ilusões que o levem a pensar que sabia o que de fato não sabia e assim torná-lo-ia mais preparado para se lançar à descoberta da verdadeira natureza das coisas que o cercam. Com isso, ficaria claro, para ele, que não lhe foi dado um caminho pronto, mas, ao contrário, um caminho – um método – para que com este ele possa descobrir o seu próprio caminho e assim romper e quebrar os velhos e arraigados paradigmas que funcionam como uma espécie de óculos, cujas lentes só servem para deixar o usuário vesgo.


E finalmente, este jovem – através de uma formação esmerada – iria se tornar inteiramente pronto para entender que todas as suas ações e concepções de mundo não são outra coisa senão um produto das influências do mundo que o circunscreve e que, de um certo modo, foi-lhe impostas. Além disso, iria se conscientizar, também, de que até então não passava de um verdadeiro marionete ou fantoche, conduzido por cordas dispostas ocultamente, como Platão bem ilustra, com toda clareza, no seu mito da caverna, em sua obra República.
1 JAEGER, Werner. Paidéia.

2 comentários:

  1. Muito bom. Essa mesma arrogância quanto a formação os Homens costumam ter quanto a própria existência, ao pensar que o mundo, seu corpo e o universo se fizeram sozinhos, sem uma administração inteligente.

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  2. Bom texto! Se me fosse permitido uma observação eu diria que a vita activa é a entrada na política que já pressupõe a ética. Considerando o universo grego, a ética é u má pequena parte da política , menor mesmo que a economia. Outro ponto no texto que está latente, e com o qual concordo, é que a educação e seu processo é um fim em si mesmo, uma αρετή e não um meio para se alcançar algo, como dinheiro ou status social. Por último, penso, cabe a nós qe eu nos dedicamos à filosofia buscar entender melhor o processo de ingratidão ou, diria, ressentimento. Scheller e Nietzsche podem servir como ponto de partida para tal reflexão .

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